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Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 3 de abril de 2022 · 4 mins read
Diário sendo escrito
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Acordo, tomo o pequeno almoço e vou ao café. Volto e sento-me à secretária. Procuro as minhas notas e entretenho-me a ler os meus diários… vários anos de diários. Um processo que me leva a muitos locais da minha vivência e experiência. Locais estes, muitas vezes, duros de reviver e duros de entender. No entanto, para mim, é necessário viajar até lá algumas vezes. Olhar para o passado para crescer. Perspectivas e retrospectivas sobre a minha vida, sobre o meu passado, presente e futuro.

Há poucos dias comemorou-se o Dia Internacional da Doença Bipolar, no dia seguinte o Dia Internacional da Visibilidade Trans. Muito poderia escrever sobre estes dias, como já escrevi aqui, aqui e aqui.

Hoje escrevo sobre a descoberta do meu passado. Escrevo sobre quão é importante, para mim, reconhecê-lo e abraçá-lo como parte integrante de quem eu sou agora. Muitas vezes pergunto-me pelo luto de quem eu era há alguns anos atrás. Entendo o luto pessoal como um processo importante para muitas pessoas. Porém, não é para mim. Teria de fazer imensos lutos porque morri e vivi imensas vezes, porque desconstruí-me e reconstruí-me imensas vezes. O luto torna-se um significante de uma vida nova. Eu não sinto que procurei uma vida nova, sinto que estou em processo constante de mutação, de desenvolvimento e crescimento. Como costumo dizer, a minha transição não começou no dia em que me descobri trans e/ou não binária. A minha transição começa quando toquei o mundo.

Redescobrir o meu passado e entendê-lo hoje é, também, reconhecer e abraçar os estados emocionais que sempre vivi. Um abraço que percorre a minha vida, abraçando a minha criança e a minha adolescência. Manter este registo é essencial para reconhecer quem sou hoje. Escrever e manter um diário permite-me entender o mundo da minha perspectiva, muitas vezes errada, duvidosa e complexa. Porquê? Porque a leitura do mundo depende das nossas subjetividades, dos nossos crescimentos e das nossas descobertas.

É com prazer que leio as minhas histórias de sobrevivência e vivência. É com prazer que vejo as minhas fotografias e relembro cada momento e cada pedaço da minha vida. É com alegria que conecto as fotografias aos textos, muitas vezes duros, mas necessários. Conecto-me com o passado e procuro revivê-lo… não para o sentir, mas para o redescobrir sobre a visão da Daniela adulta. Os meus traumas são parte da minha existência e de quem eu sou hoje.

Por vezes esta linha ténue entre o prazer e a dor está muito presente. Um prazer associado ao meu empoderamento, uma dor associada às minhas descobertas e consciencialização do meu lugar na sociedade. Porém, entre o prazer e a dor, encontro chaves importantes para o meu desenvolvimento. Escrever com esta vontade ajuda-me neste processo, ajuda-me a reconstruir permanentemente a minha vida e os meus estares. Ajuda-me a viver, mais do que sobreviver.

Os meus diários datam o seu começo no ano aproximado de 2013. Desde aí imenso tenho escrito e reflectido, porém, também imenso me tem causado dor. Escrever sobre anos subsequentes a 2013, mas relembrar e reviver sobre anos anteriores. Sempre foi um desafio, mas um desafio com a sua importância característica. Um desafio vitorioso, eu estou aqui viva.

Há uns anos eu procurava apenas sobreviver, era a minha batalha primária: sobreviver. Conjugava as minhas crises de saúde, os seus altos e baixos permanentes, o desequilíbrio e a instabilidades, com as minhas buscas identitárias (que foram várias até aos dias de hoje). Um processo que se mesclou em situações mais ou menos complexas. Entender a minha história de vida não pode só passar pelas minhas identidades, mas também sobre quem eu sou, como cresci, o meu contexto e a minha realidade.

Dizer que sou uma mulher trans, não-binária, não diz praticamente nada sobre mim. No entanto, mais do que as minhas identidades, a procura dos pilares que me sustentam a vida é um processo árduo e complexo. Um processo duro e cheio de rasteiras, principalmente porque vivi em muitos contextos diferentes. Quero com isto dizer que não me posso reduzir a como me identifico, mas necessito procurar quem eu sou.

Entendo a dor de viajar no passado, mas para mim pessoalmente, essa dor é importante para nos impor um futuro mais promissor e menos invisível. Eu sempre fui e sempre serei, com as minhas mudanças, o meu crescimento e a minha mutabilidade. Não sou um ser estático no mundo e isso os meus diários revelam… essa mutabilidade, essa procura insana por se ser e existir.

Hoje sinto felicidade e sinto o abraço da minha pequena criança. Olhar para esta pessoa há muitos anos é, para mim, um processo saudável de curar todas as minhas feridas e entender o trauma como parte da minha vivência e como forma de catapultar a minha vida para um futuro melhor. Hoje sinto tranquilidade e calma. Um sentir que surge e emerge da minha auto-descoberta, do meu autocuidado, das minhas experiências.

Um diário que se constrói diariamente, um diário cheio de eu. Um diário que amo pois amo-me a mim, amo quem sou e quem sonho ser. Um diário cheio de eu. Um eu também expansível e nutrido pelo amor que o mundo que crio me concede, que me dá e me oferece.

Escrevo para recordar,
Escrevo para existir,
Escrevo porque vivo.

Dani

Imagem: diary writing - Fredrik Rubensson

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma