saúde, trans,

Dias contra o estigma e pela visibilidade

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 30 de março de 2021 · 4 mins read
Rede Neuronal
Partilha

No momento que escrevo este texto comemora-se o Dia Mundial da Doença Bipolar e é, também, véspera do Dia Internacional da Visibilidade Trans. Algumas vezes escrevo, escrevo em consequência de ambos os dias. Mas também escrevo em consequência dos meus próprios sentires. Porém, é necessário ter consciência que estes dias não devem começar e acabar aqui. É necessário fazer um trabalho árduo para que durante o resto ano se combata o estigma da doença bipolar e se torne visível as identidades trans, não-binárias e género diverso. Deve ser um processo continuo, orgânico.

Colocar ambos os dias na mesma linha do parágrafo, nada tem a ver com alguma relação existente entre ambos. Mas sim, a relação que ambos têm comigo: enquanto pessoa Bipolar e enquanto pessoa Trans Não-Binária. O desafio é não deixar que ambas se consumam mutuamente e que entendamos (eu entenda) de que sentires estou a falar. Não posso deixar de dizer que, no meu caso em particular, respeitar a minha identidade, deixá-la falar e existir foi um passo para reduzir os períodos de depressão ou, pelo menos, atenuá-los. Não obstante, estes processos não são tão lineares para poder justificar esta razão de causalidade, mas é algo que vem dos meus sentires, das minhas emoções. Todavia, respeitar-me enquanto pessoa Bipolar e enquanto pessoa Trans foi uma etapa longa da minha vida pois, muitas vezes, o medo do estigma social deixava-me num fosso difícil de interpretar… não era o medo de ser quem era, era o medo de não ser entendida pela sociedade.

Em certos momentos, lembro-me como foi este caminho. Lembro-me e relembro-me. Viajo pelas estradas que percorri e vejo os muros que derrubei – alguns deles bastante altos. Por quanto, hoje estou aqui, a relembrar. Parte das barreiras que ultrapassei deviam-se a construções interiores que me dificultavam o quotidiano, promovendo as minhas crises. Saltando continuamente entre crises depressivas e eufóricas, a minha fraca estabilidade obrigava-me a despender imensa energia para conseguir manter compromissos diários, como, o trabalho, a escola ou a manutenção de círculos de amizades estáveis. Nos momentos depressivos isolava-me, a energia perdia-se totalmente no vazio e custava-me imenso ter razões para viver. A manutenção da vida tornava-se um exercício tortuoso e difícil de acomodar. De uma forma diametralmente oposta, os momentos eufóricos resultavam numa sobrecarga de energia no meu corpo… o meu pensamento circulava tão depressa que não conseguia focar-me em nada, perdia-me na primeira palavra que dizia e mudava de assunto. Da mesma forma, manter compromissos era de um sacrifício enorme. Algumas vezes, mantinha episódios depressivos misturados com episódios eufóricos, um desafio ao próprio reconhecimento do meu estado. Em certos momentos agudos: ficava incomunicável, deixava de conseguir escrever (não tinha controlo sobre os movimentos finos da mão) e deixava de conseguir falar (não conseguia emitir som nenhum). Funcionalmente ficava… uma desgraça.

As restantes barreiras deviam-se à estrutura social em que vivemos. Atenta ao estigma da saúde mental, escondia-me do mundo quando tinha crises. Por exemplo, muitas vezes, em períodos pré agudização do meu estado, tornava-me altamente funcional no trabalho – era a forma que tinha de me defender. Todavia, tudo o resto se ia desmoronando. A incapacidade de haver respostas para quem sofre de um ou vários problemas de saúde mental, a incapacidade de se combater o estigma de forma efetiva, reduziam-me o espaço de ação, colocando-me nas margens, no lugar de quem não tem posição na sociedade. Era marginalizada e eu própria também me empurrava para as margens.

No meio deste caminho sinuoso as questões relacionadas com o meu género começam a ganhar um peso enorme e, à falta de informação nos primeiros anos em que estas perguntas se fizeram, eu associava a minha falta de concretização identitária ao meu estado de saúde mental. Ser trans, em si, não é cruel, cruel era a minha transfobia internalizada, a minha auto patologização por me achar diferente e por sentir que não me enquadrava como a generalidade das pessoas em meu redor se sentia. Descobrir-me na minha identidade entre crises, entre brechas do meu estar, foi uma provocação à minha forma de entender o mundo e uma provocação às minhas construções interiores. De repente, tudo o que eu tinha de garantido por certo, passou a estar errado ou em questão. Foi uma contrariedade enorme. Rapidamente entendi que as margens iriam-se tornar o lugar para viver, uma terra de ninguém. Quando mais tarde, me afirmei enquanto pessoa trans, era contra todas as formas de patologização das identidades e corporalidades. Mas o processo clínico existente à época (e tenhamos sinceridade, ainda hoje), mantinha-me colada à perturbação. Inclusive, o meu diagnóstico serviria como base para questionar se realmente eu poderia ser uma pessoa trans.

Hoje, estou noutro ponto, mais estável, melhor e mais capaz. Hoje afirmo e reafirmo as minhas várias identidades sejam elas o facto de ser trans, não-binária, pansexual ou anarquista relacional, entre outras. Todas estas identidades, infelizmente, passaram pelo meu questionamento à sua existência sendo eu uma pessoa com distúrbio de humor. Não podia amar, não podia desejar, não podia existir. Hoje, estou noutro ponto, consciente de quem sou e daquilo que me afeta. Estou num processo contínuo de me encontrar, de me questionar, mas sei hoje que as minhas identidades são quem eu sou, independentemente de ter doença bipolar e transtorno de personalidade borderline.

Pois, hoje e sempre, serei quem sou. Pois, hoje e sempre, serei visível.

Dani

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma