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O tempo e o caderno

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 22 de abril de 2021 · 3 mins read
Face com olhar para o chão
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Quarta, dia chuvoso, dia cinzento. Começo o dia por me encontrar com o tempo, negociar o meu estado e acabar refém dele, do tempo. Começo o dia por beijar o ar e sentir as gotas de choro dos céus correrem-me pelas faces. Começo o dia por abraçar a terra que piso e sentir o chão desabar-me dos pés. Foi assim, o meu encontro de hoje com o tempo. Foi assim que o meu estar se colou ao estar do tempo, unos e apenas só. Um sol escondido, tal como a luz da minha mente. Um azul oculto, tal como a dimensão da calma que me tem preenchido. Foi assim, que fiquei refém dele, do tempo.

As palavras deixaram de me fazer sentido, as frases ficaram desconexas, os textos vagamente completos. O toque da caneta perdeu-se nas memórias de um passado, a tinta evacuou-se pelos caminhos já trilhados. O caderno, esse… permanece, vazio. Um vazio impenetrável, um vazio circundado de mundo, mas apenas isso, vazio, o caderno. Sem histórias, sem aconteceres, sem movimento e sem ação, apenas umas folhas degradadas e sem futuro. Um caderno que se esqueceu de como é o toque da caneta, do toque da mão que o preenche, da sensação de tinta corrida pelas suas páginas. Vazio.

Hoje, o tempo e o caderno desencontraram-se. Um tempo que enfraquece a mente, um caderno que se ousa perdido por entre gotas. Queria. Apenas queria. Mas querer é muito, querer é difícil, querer é pesado, querer é apenas querer. Sem sonho ou plano. Querer é isso. Querer é apenas querer. Hoje, as palavras e a vontade desencontraram-se. Umas palavras que seguem esboçadas, letras que não se revelam na terra. Queria. Apenas queria. Mas querer é duro, querer é errar, querer é esquecer, querer é apenas querer. Sem vontade ou objetivo. Querer é isso. Querer é apenas querer.

O vazio preenche-me, o vazio conquista-me, o vazio prevalece. O vazio está aqui, profundo, encaixado nas minhas entranhas. O vazio está aqui, diluído, unido com as minhas células. O vazio está aqui, agora. Ocupa-me o corpo, dissolve-me a mente, corrompe-me a alma. Aqui, agora. Está.

Não sei o que sinto, mas também não sei o que não sinto. Assim hoje, como o caderno, como o tempo. Sou levada, sou empurrada e sou puxada, sou dilacerada. Impludo nos meus sentires e expludo nas minhas emoções. São tudo e não são nada. Em cima, em baixo, elas vão, aqui e ali, desencontrando-se do meu eu. Ou eu desencontrando-me?! Talvez eu queira, ou talvez não. Talvez eu sonhe, ou talvez não. Talvez eu tenha vontade, ou talvez não. Talvez, a minha vida circunda os talvez.

Desfaço o caderno (a mim) em pedaços, estilhaço todos os seus pormenores, fragmento todas as suas memórias… racho com as linhas e com a linha da vida. Simplesmente o desfaço(-me). Procuro(-me) entre rasgos e bocados de vida, procuro(-me) entre letras soltas e acontecimentos aleatórios. O vazio transforma-se e retransforma-se, apaga e destrói o que existe… penetra nas profundezas da vida e devora o que existe e não existe. O vazio vocifera palavras ocas e sem significado. O vazio consome e alimenta-se. O caderno e o vazio. O tempo e o vazio. A chuva e a tristeza, as palavras e a melancolia.

Assim o é. Assim o é o dia…

Dani

Imagem: Emptiness - ~Erebos

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma