trans,

Atiradas para as margens... do esquecimento

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 24 de outubro de 2021 · 4 mins read
Gotas que caiem numa pequena poça na estrada
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Passaram vinte minutos desde que escrevi o título, tinha as ideias fluídas de como iria começar a escrever. Porém, perdi-me nos meus pensamentos, nas minhas profundezas e perdi a linha condutora do meu pensamento. Perdi porque também eu me sinto perdida nos meus sentimentos e no meu próprio raciocínio. Estou presa entre a razão e a emoção, numa zona limítrofe que não me deixa avançar. Sou devorada por uma incapacidade de conseguir gerir este espaço na minha mente. De gerir o que se passa no interior e no exterior das fronteiras do meu próprio território. Neste momento é assim que estou… Sinto, de uma forma muito aguçada, que o meu posicionamento identitário enquanto pessoa trans e/ou de identidade dissidente serve como utilitário e que se assume um lugar de boas impressões e/ou boas estatísticas para a inclusividade. Na prática, um corpo que é rejeitado pela sociedade, sempre o será, por mais que se sacrifique para ser reconhecido. Um corpo colocado nas margens, sempre estará nas margens. Isso.

No último artigo falei sobre capacitismo e como isso, de alguma forma, tem afectado esferas transversais da minha existência. A transfobia também cruza a minha vida em todas as esferas. Desde o meu interior consciente e inconsciente, como o meu exterior e tudo o que me rodeia. Apesar de alguns privilégios que tenho, não deixo de sentir a margem como espaço que também ocupo. A margem será sempre o meu espaço. Pois a minha existência foi, é e será sempre questionada como real, fantasiosa ou patológica. Nos dias de hoje, falar de pessoas trans, em terceira voz, entrou a fundo nas correntes mediáticas, nas instituições e até nos movimentos sociais. A terceira voz domina o discurso trans. Por outro lado, nós, as dissidências, estamos continuamente combater por estar num lugar onde a nossa voz tenha espaço, onde a nossa voz seja escutada. Onde possamos ser apenas e só nós. A nossa voz é a voz da perseverância e da resiliência.

Estar nas margens não significa apenas luta contínua por existir, mas também luta contínua para não cair no esquecimento. Falo de esquecimento material e simbólico. Material porque o privilégio não permite repensar em recentrar o sistema para que a margem deixe de ser margem. Simbólico porque as pessoas trans têm uma morte simbólica anunciada no momento em que o são – a negação constante da sociedade retira-nos qualquer possibilidade de agência própria e auto suficiência. A cis colonialidade rouba-nos a nossa identidade, o nosso corpo e a nossa manifestação enquanto pessoa. Somos isso, estatísticas, teses de mestrado, testes de doutoramento, livros e histórias. Somos trabalhos escolares, somos entrevistas e somos conferências inclusivas. Somos a matéria prima de trabalho para a voz de terceiros.

A nossa voz quer-se calada.

Dizer que na generalidade a violência que nos atinge é perpetuada continuamente. Dizer que o patriarcado, o capitalismo, o colonialismo, o racismo, a xenofobia, o capacitismo, entre outras formas de violência se interseccionam com a transfobia. Dizer que a transfobia mata. Dizer que a transfobia é necrófaga – que se aproveita dos nossos corpos mortos, do nosso sofrimento, do nosso sangue e daquilo que representamos para o sistema. Dizer que a sociedade mata. E mata em nome da inclusividade.

A nossa voz quer-se calada.
A nossa voz quer-se calada por isto e muito mais.

O meu território não o posso reclamar para mim mesma. O meu território não o posso trabalhar ao meu desejo. As fronteiras do meu território são impostas pela cis colonialidade. A terceira voz sabe quem sou, sabe o que quero, para onde vou. A terceira voz é a autoridade do meu corpo, apesar de se afirmar inclusiva… porque nos observa.

Não crescemos para sentir amor, não crescemos para sentir carinho ou compreensão. Crescemos para cair nas mãos do esquecimento de quem nós verdadeiramente somos. Crescemos para cair nas mãos do esquecimento da plenitude e transversalidade das nossas vidas.
Crescemos para sentir a morte, muito antes de morrer.
Crescemos para sentir o vazio, muito antes de viver.

As minhas lágrimas derramadas pela solidão dão voz ao abandono, dão espaço à terceira voz. As minhas lágrimas derramadas pela solidão dão voz às injustiças, dão espaço à violência. Não quero chorar por lamentar quem sou, quero chorar de raiva por quem entende a inclusividade no discurso, entende a inclusividade no cuidado comunitário, entende a inclusividade nas palavras saudosas e no penso em ti. Não quero chorar por lamentar quem sou, quero chorar de raiva por aquilo que o mundo é.

Acredito, sempre acreditei que todas as pessoas são agentes de transformação social. Hoje, acredito que as pessoas apenas podem ser agentes de transformação social – nem toda a gente o é. Nem toda a gente o procura. Nem toda a gente o quer ser.

Dani

Imagem: 2oo - Benjamin Linh VU

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma