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A violência que nos impregna...

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 8 de junho de 2021 · 11 mins read
Textura cor de rosa
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Estamos em Junho e, neste mês, celebra-se o Mês do Orgulho LGBTIQA+. O porquê de se celebrar o orgulho neste mês tem as suas razões históricas. Tudo se relaciona com o motim que aconteceu em Stonewall a 28 Junho de 1969. Onde pessoas trans, negras, migrantes, trabalhadoras do sexo, lésbicas se revoltaram contra a crescente violência policial, no contexto dos EUA. No entanto, o que me traz a esta escrita é a necessidade de argumentar por umas políticas de inclusão mais radicais, mais efetivas e com mais garantias de segurança. Vou focar-me principalmente na esfera do trabalho.

Fiz o meu coming out, no meu emprego, em Outubro de 2014. Quando falo em coming out, estou a falar em colocar 100% das pessoas com quem trabalho ocorrentes de que sou uma pessoa trans e que isso irá implicar mudanças estruturais. Nessa época trabalhava no SAPO – PT Comunicações. Ao longo desse ano, algumas coisas já foram mudando. A minha visão sobre o que era ser uma pessoa trans ainda era bastante limitada, mas era o que sentia na altura. Vivia uma espécie de vida dupla, navegando entre a existência da Daniela nos contextos sociais e entre o Daniel no trabalho.

Tudo começa em Maio, desse mesmo ano, quando tenho uma crise identitária e corto aquilo que mais sagrado era para mim no meu corpo: o meu cabelo. Corto até não haver nada. Com este movimento decido que realmente quero mudar o meu nome, quero ser reconhecida por quem sou. Peço consulta no Hospital Santa Maria - Lisboa, onde tenho consulta apenas em Julho. Nesse dia levei, também, uma carta do meu psiquiatra clarificando que tinha um problema de saúde mental, mas estabilizado. Fui atendida pelo Dr. Rui Xavier num momento de vulnerabilidade máxima, acabei sendo bastante maltratada por não estar a cumprir com dever os mandatos sociais de ser mulher. Simultaneamente vou contando a algumas pessoas no trabalho, pessoas que considerava minhas amizades e onde sentia um espaço seguro para falar. Nessa mesma época comprei alguma roupa feminina, coloquei brincos, estava ligeiramente a mudar a minha expressão. Assumi o mau trato do médico como alavanca para acelerar o meu processo no trabalho.

Quando decidi que era o momento, a informação chegou aos recursos humanos – à época eu não tinha noção do que eram violências estruturais e micro agressões. Decidiu-se conversar com todas as pessoas do meu entorno, correndo vários grupos sem eu nunca estar presente. Nunca pude (felizmente ou infelizmente) entender as expressões, as reações das pessoas que trabalhavam comigo quando souberam: isso era uma informação importante para mim. Voltando à nova consulta com o Dr. Rui Xavier, não havia ninguém nas minhas esferas que não soubessem o que eu estava a fazer.

Exprimir-me no feminino nunca foi difícil para mim, já o fazia há vários anos em muitos contextos, nunca o tinha feito num espaço de trabalho. Toda a lógica e relação de poder muda.

A mudança do meu nome na empresa iria acontecer a X dia. Ainda assim, o sistema foi mudado para Dani e não Daniela (nessa época eu ainda não usava o nome Dani para me autonomear – mudar para Dani continuava a não respeitar a minha identidade daquele momento, pois era “simplesmente” um diminutivo do meu nome). Esse X dia também era depois de nos movermos de um edifício onde trabalhavam grande parte das pessoas da PT Comunicações, para um edifício dedicado só ao SAPO. Numa mini reunião que tive já nesse local com algumas pessoas que estavam a “gerir” o processo, explicaram-me que tinha tudo de ser feito com cautela, não fossem os rapazes sentirem-se ameaçados, porque eu poderia querer relacionar-me com eles.

O dia X chega e eu apareço no trabalho relativamente habitual, ligeiramente mais feminina, ténis, calças, camisola. Muitas pessoas me perguntaram porque não vinha eu de peruca, de saia e lantejoulas. Eu não vinha feminina o suficiente. Afinal, queria mudar para onde? Na primeira semana, comecei a sentir-me um boneco, um fantoche. Era alvo de imensas perguntas, perguntas invasivas que nem eu sabia responder. Porém, era a minha vivência e, melhor do que ninguém, sei da minha vivência. Era eu que escolhia as minhas roupas, estava a aprender, na realidade nunca quis saber das regras impostas sobre como nos devemos vestir, mas… por via das dúvidas era melhor manter alguma coerência, o medo de ser uma má figura e perder o emprego era grande. Na semana seguinte, a propósito de uma consulta teatral com o Dr. Rui Xavier, apareci no trabalho de saia. Os minutos de silêncio ecoavam nas paredes quando eu passava. Dias depois, sou questionada por um rapaz que era novo na empresa e que me só tinha visto naquele dia, se ainda tinha o meu pénis. Estas perguntas tornaram-se recorrentes. Ou outro colega que disse que queria apalpar as minhas mamas quando crescessem. Ou outro colega que disse que agora teria todo o direito de me assediar. Ou todas as outras pessoas que deixaram de me falar. Deixei de ter conversas técnicas sobre trabalho, sobre implementação e arquitetura de software, passei a ter conversas sobre compras, maquilhagem e roupa. Aos poucos fui sendo afastada até das posições de trabalho que ocupava, perdendo a voz nas reuniões, perdendo a capacidade argumentativa.

Naquela época usava mais saias e sapatos com tacão, não me importava o tamanho, sentia-me bem e era isso que importava. Alguém me disse, “na melhor das intenções” para ter cuidado, porque essa pessoa já sabia tudo sobre pessoas transexuais, porque tinha lido e sabia que nós tínhamos tendência a exagerar no princípio. Um dia, sou chamada à parte para me dizerem que não me querem assim, porque era roupa de puta e eu não era nenhuma puta. No mesmo cenário, eu adorava usar batons escuros, sempre gostei (da minha era mais gótica, sempre usei batom preto). Fui novamente chamada a atenção. Também fui chamada à atenção pela maneira como colocava os meus pés no chão, como andava e/ou como me mexia.

Por sinal, chega o Natal e eu trabalhava numa consultora, a Prime IT, o SAPO era seu cliente e por isso eu tinha sempre contactos dos dois lados. Fui à festa de Natal da consultora e foi bastante desagradável. Para além de muitos risos e maus estares por parte de colegas que eu não conhecia, decidiram contratar uma pessoa para animar o jantar com alguma comédia e as piadas foram quase todas sobre homens que se vestiam de mulheres, travestis e por aí a fora…

Vale a pena dizer que do ponto de vista da saúde, os meus sintomas estavam-se a agravar, estava a ficar deprimida. As violências continuam a um ritmo escandaloso, pessoas que pensavam serem aliadas tornaram-se controladoras. Tudo o que eu fazia servia de escrutínio público.

Houve uma época em que decidiram fazer sessões semanais para as pessoas falarem de algo que gostam. Eu quis fazer uma sessão de astronomia. Era claro que para mim, naquela situação, falar em público era algo muito difícil. No entanto correu bastante bem. As conversas eram gravadas para depois o resto da empresa ver. Porém… no meu caso em particular, chamaram-me à parte para me dizer que não iriam publicar o meu vídeo. Eu estava com umas calças mais justas, usava sutiã na época, e acusaram-me que era uma vergonha eu ter um alto nas calças quando tinha também mamas e que isso iria ser uma vergonha para a empresa. Inclusive foram pedir a mais pessoas para confirmarem essa tese. Fiquei de rastos – como é que uma simples tertúlia de astronomia se vira num problema sexual e genital.

Decidi que a partir daquele momento as coisas seriam como eu queria, estava mais empoderada e isso ajudava-me a salvaguardar a minha saúde mental. Eu era quem era, não era a roupa e a expressão que mudavam isso. Voltei a deixar crescer a barba e o bigode (no que era possível), voltei às calças largas e t-shirts largas… comecei a fazer a maior mistura de roupa possível, entre aquela que se considera masculina e/ou feminina. Deixei de performar a mulher perfeita que queriam que eu fosse. Não era esse o meu caminho. Claro que neste momento muitas pessoas acharam que eu estaria a desisir ou a voltar para trás.

As violências continuaram e aos poucos fui me deprimindo mais. Comecei a pensar que tinha de parar, mas parei de forma obrigada e bruta, fui de atestado dois meses e entreguei a minha carta de demissão.

Anos depois de ter saído do SAPO, continuava a não nomear esta empresa pelas suas más práticas em relação a pessoas LGBTQIA+. Falava de episódios, mas não nomeava: sabotava-me, achava que ainda devia alguma coisa à empresa por me ter “aceite” e não ter ficado logo sem trabalho.

Ao invés de parar uns meses, logo a seguir do atestado, entro noutra empresa, a Talkdesk. A princípio correu tudo bem, a minha capacidade de estar íntegra era forte, mas comecei a ficar frágil com outros processos pessoais que estavam a acontecer. Entra uma nova pessoa para a minha equipa, líder técnico, uma pessoa LGBTIQA+-fóbica a todos os níveis e a minha vida ali ficou condenada. Tinha muitos dias de discussão por ser quem era, era avaliada de uma maneira ridícula, deixei de ter reuniões de acompanhamento que me ajudassem a perceber em que estado estava. Resultado, só me aguentei nesta empresa por um ano, não vi o meu contrato renovado. Havia pessoas simpáticas que me apoiaram, mesmo depois do que aconteceu com a minha saída. No meio do ano ainda me vieram pedir para eu arranjar mais pessoas diversas para a empresa para melhorar as percentagens de diversidade.

Depois de sair da Talkdesk, senti que era importante parar uns meses e assim o fiz, para me recuperar.

Entrei para o OLX Group há sensivelmente 4 anos e lá continuo. Até ao momento não vivenciei discriminação direta. Claro, já tive de dar bastantes aulas, mas nunca me senti prejudicada por ser todas as minhas identidades.

No outro dia vi as bandeiras do arco-íris em algumas destas empresas e veio-me a zanga e o mau trato. O meu corpo sentiu como se estivesse no momento. O mês do orgulho não é um mês para colocar bandeiras e para ser visível e bonito. O mês do orgulho é um mês que simboliza resistência, resiliência, comunidade e colectividade. É um mês de carga política, de reivindicação dos nossos direitos, da nossa autodeterminação e identidade.

No SAPO ainda queriam fazer uma história comigo, ao que eu associei “vamos mostrar que somos uma empresa inclusiva” e recusei. Porém, em nenhum dos dois locais tive espaço para falar das violências que estava a ter, que me estavam a prejudicar no dia a dia. Em nenhum dos dois locais havia políticas concretas que me ajudassem a enfrentar a transfobia. Havia sim, uma questão de imagem para a inclusividade.

Existiram mais violências do que as que relato aqui, principalmente porque hoje sei ver o que são violências. Porque hoje tento desnormalizar a violência como mecanismo automático.

Usar bandeiras, cores, afirmar-se LGBTIQA+ friendly no mês do orgulho não chega… não vou dar uma bolacha a quem o faz. As políticas são para ser concretas, as mudanças estruturais devem acontecer, deverá haver espaço para as pessoas que são vítimas de discriminação possam falar e ver essa violência validada. As empresas são o local onde muitas pessoas passam a maioria do seu tempo. Não, não façam lavagem de cara/marca quando nem linguagem inclusiva usam, quando nem dão o acesso à livre expressão de género, quando não condenam comentários fóbicos, quando simplesmente compactuam com o sistema em vigor.

O caminho está na mudança de paradigma: o nível de desemprego entre pessoas trans, não-binárias e género diverso é imenso; por isso, não me falem em meritocracia. Para quem não vivência esta realidade não há nada de mérito em ter um emprego onde não se é discriminado e desrespeitado a qualquer hora e lugar. Não há nada de mérito quando se está numa posição de segurança e apoio.

Não há nada de mérito em ser branco cis hetero mono capaz e neurotípico.

Dani

Imagem: Beet Juice Texture - Phoebe Baker

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma