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A morte

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 25 de abril de 2022 · 4 mins read
Auto retrato mostrando um olha direto para a câmara
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Passa da meia noite, é quase uma hora da manhã. A medicação para dormir tomada, mas a vontade de escrever é mais forte. Não sei se será um texto que irei publicar ou não, mas a vontade está, e a minha própria vontade respeita-se. O sono não me incomoda, a escrita continua o seu caminho. Há pouco publicava uma fotografia no Instagram (a mesma que acompanha este texto). A mesma que revejo e sorrio, a mesma que me dá forças para continuar contra um cistema exigente, opressivo e controlador. Um cistema que mata a cada dia e a cada momento. Um cistema que se procura alimentar a si próprio e a redefinir a realidade e a experiência do mundo.

Faço acompanhar a fotografia com um pequeno texto:

Estava a dias de fazer 27 anos, cerca de um ano antes da minha primeira consulta em sexologia clínica, cerca de um ano antes do meu coming out enquanto mulher trans e, posteriormente, enquanto mulher trans e não-binária. O meu corpo sempre foi, é e sempre será de quem eu sou, de mim mesma para mim mesma. Porque a autonomia é liberdade e porque liberdade é poder viver. O meu corpo é aquilo que eu quero que este seja. Sem limites, sem quereres, ordem ou norma. O meu corpo é aquilo que eu defino que seja.
Acordo hoje e revejo fotos minhas de anos anteriores, revejo com um sorriso. Quem eu era e quem eu sou. É. Na completude de ser. Eu sou.
Não me perdi, não me dividi. Cresci, adicionei e somei. Sou mais do que era, sou mais do que sou, e sou mais do que serei.
Agora e sempre. Com recordo, com as cicatrizes e marcas de um cistema que nos fragiliza. Mas com as marcas de que a força de continuar está cá.
Olhar-me no passado é dar-me força para o futuro.
Eu sou. Só isto. Eu sou.

Hoje sou diferente, muito diferente. Ou então, melhor, sou apenas eu, apenas isso. Redesenhei-me, reconstruí-me e reencontrei-me. Fui buscar em mim aquilo que estava já lá, escondido. A força de viver e de estar. A força de conseguir e avançar. A força de sorrir e ser feliz.

Acredito na mudança, sempre acreditei… acredito na destruição e na revolução.

Pois, foi na destruição e revolução que eu, eu e eu, eu e o meu corpo, vivemos ano após ano. Foi na revolução que construí a minha realidade e que simultaneamente, a destruí para a erguer de novo. O meu mundo foi derrubado vezes após vezes, como um sonho que se repete na minha cabeça até achar a solução óptima. Até que no fim sorria e não volte a morrer. Até que sobreviva. Até que a morte me deixe de perseguir. Até que a morte…

Eu morri e vivi. Remorri e revivi. Porque foi na morte, no abandono do cistema, que me entendi enquanto pessoa vivente. Foi na morte, no abandono do cistema, que deixei de sobreviver, para viver. O cistema não desapareceu, o cistema vive com todos os seus tentáculos. O cistema vive do controlo dos corpos e das suas experiências, o cistema alimenta-se da felicidade, consome a diversidade e fomenta a pobreza das vivências.

Eu morri e vivi. Mas hoje já não morro, hoje estou solidificada. Hoje é o cistema que vai morrer. Hoje, e cada dia, hoje e a cada momento, sou eu que o vou consumir, consumir até não lhe restar nada. Até que este, o cistema, caia e não tenha energias para consumir. Não consiga mais alimentar-se da felicidade e consumir a diversidade, mas que se alimente apenas de tristeza e que consuma apenas padrões repetitivos, como se um pedaço de pedra passa-se a ser o seu alimento contínuo. O cistema morre e nós vivemos.

Porque eu morri no cistema, mas revivi e re-encontrei-me nas fronteiras, reencontrei-me nos limites de algo que não consigo nomear (um transtema?). Encontrei-me no espaço a infinitas dimensões, desmultiplicada e construída numa realidade unidimensional. Assustei-me, tive medo, tive suores frios, tive dúvidas, tive incertezas… mas agarrei a minha mão e recoloquei-me – fora do cistema.

A cada dia procuro o balanço entre a minha existência e a existência no mundo. A cada momento negoceio a minha estadia aqui. Nesta realidade suja, penosa e deprimente. A cada momento recálculo-me e reequaciono a vontade e o desejo de quebrar. A cada momento repenso em como o cistema alimenta a miséria, promove a dor e fomenta a riqueza do sofrimento.

O cistema significa isso: sujidade, miséria, dor, sofrimento e tristeza.

Porque é hoje que mato o cistema, porque é hoje que vou deixar de precisar morrer eternamente.

Dani

Imagem: Auto Retrato - Daniel Bento

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma