Eram 23h30, saía de casa para me divertir, dançar e ouvir um pouco de música alternativa - já não saía à noite há algum tempo. Não tenho tido disponibilidade de tempo nem mental para estar em aglomerados de pessoas, para socializar e para conseguir ter iniciativa para colocar um pé fora de casa à noite. Mas ontem decidi que haveria de sair. E como decidi que haveria de sair, decidi também, ao fim de longos meses, arranjar os meus corpetes que estavam à espera de atilhos novos à imenso tempo. Tinha um vestido dentro do estilo Steampunk e decidi que era o ideal para esta noite - metal, folk, … era a combinação ideal. E assim foi. Preparei-me e saí. Quando atravessava a estrada, passa um camião com uma série de indíviduos que leio como homens cis, que olharam para mim e gritaram “É um homem!” e ouviu-se uma grande gargalhada de todos dentro do camião. Não foi uma boa maneira de começar a noite.
Confesso que tem sido cada vez mais raro ser misgendered no meu dia a dia, mas quando isso acontece e, principalmente quando acontece desta maneira (e dado o nosso contexto político atual), dá-me alguns frios na coluna. Nunca sei o que esperar destes momentos. O medo não me assalta, mas atinge-me um sentimento de desilusão pela sociedade em que vivemos agora.
Na História já passamos vários momentos difíceis, muito difíceis. Onde outras pessoas antes de mim, estiveram no mesmo lugar de crítica que tenho hoje, mas submetidas a condições ainda piores. Porém, parece que não aprendemos nada com o tempo. Estamos em 2025, e ainda é divertido insultar alguém pela janela de um camião com gritos na via pública. Estamos em 2025 e ainda é comum seguirmos o script da vida sem questionar, sem criticar e sem subverter. Dá-me pena (e pena de uma forma negativa), que estas pessoas percam mais tempo a fazer um grito de ofensa, que a aprender sobre diversidade. Dá-me pena falar-se da liberdade de expressão quando convenientemente convém (faço o pleonasmo), quando tomam por alvo pessoas que já são socialmente vulnerabilizadas.
Estamos em 2025.
Estamos em 2025 e a informação abunda.
Estamos em 2025 e a visibilidade cresce.
Estamos em 2025 e vemos cada vez mais jovens a deixar-se levar por discursos a-críticos, dogmáticos e falaciosos.
Estamos em 2025 e assistimos a uma sociedade que se torna mais miserável a cada decisão que toma.
A sociedade performa, eu também performo. Todas as pessoas performam regras e contra-regras na sociedade em que vivem. Todas as pessoas de alguma forma subvertem alguma regra social. No entanto, há idiotas e há pessoas que vêm na subversão da outra pessoa potencialidade para desfazer e desconstruir ideias pré feitas e preconceitos. As regras sociais não são ditadas por elementos biológicos e/ou da natureza per si, mas por normalização de comportamentos, códigos e condutas sociais. Aprender em comum é um bem subaproveitado nos dias de hoje.
Há uns anos escrevi sobre como fui vítima de assédio no trabalho (A violência que nos impregna), sobre as perguntas que me faziam, sobre o lugar em que me colocaram muitas vezes. Tenho escrito sobre algumas violências (Dias contra o estigma e pela visibilidade) a que tenho sido sujeita nos últimos anos, principalmente depois de me afirmar enquanto mulher e enquanto pessoa não-binária. Pergunto-me, é mesmo necessário ter de viver violência para se existir na nossa forma mais completa? Porque não é a nossa descoberta pessoal, o nosso entendimento sobre o nosso eu, a nossa subversão, a nossa crítica e posicionamento uma forma de estimular a sociedade a contestar regras seculares que em nada beneficia alguém? Porque não simplesmente… viver. Porque temos de fazer com que a vida seja um ato de resistência e de sobrevivência diária?
Conseguimos ir ao espaço, conseguimos explorar planetas, conseguimos prever acontecimentos astronómicos, conseguimos curar muitas doenças por mais complicadas que sejam, conseguimos explorar o fundo do oceano e conseguimos comunicar a velocidades que nunca pensamos. Porque continua a ser tão difícil quebrar uma ideia tão errónea como caixas estanques onde se colocam as pessoas e onde se lhes colocam amarras para nunca saírem?
Questiono-me muitas vezes…
O alerta constante passou a fazer parte da minha vida, como estou, como me apresento, como falo, como escrevo, onde saio, por onde saio, com quem saio, de que forma vivo as minhas relações… pois tudo pode se pretexto para uma dose de violência indesejada, uma dose de violência que não merecemos… e não, a violência não existe só de forma física. A violência toma muitas formas, desde a invisibilidade, ao insulto, à recusa em poder arrendar casa, à recusa em poder ter um trabalho, ao abandono da família e das amizades próximas,… poderia continuar a escrever, mas enfim…
Em várias entrevistas que já dei em jornais públicos, já tive a minha morte desejada, já tive ameaças de morte, já tive pessoas a acusarem-me por ter uma saúde mental atípica… poderia continuar, mas é escusado… porém, também tenho a minha fotografia numa lista de terroristas LGBTI+… a visibilidade às vezes custa. E custa caro. Ontem quando saí à rua e ouvi aquelas gargalhadas “É homem!”, perguntei-me se aquelas pessoas me reconhecem de alguma imagem, se quero mesmo ter de passar por isto todos os dias e/ou se quero mesmo estar constantemente num lugar de ameaça, de exclusão e de violência.
O mundo não deveria ser assim.
Contudo, para finalizar numa nota positiva, cheguei ao bar e as pessoas que me conhecem receberam-me calorosamente. Com um sorriso e muitos cumprimentos, felizes de eu estar de volta ao espaço. Puxando pela minha auto-estima que vinha abalada, puxando pelas minhas qualidades e pelo meu sorriso em estar viva e ter conseguido enfrentar mais um dia.
No fim, é por estas pessoas que continuo a lutar e é por estas pessoas que vale a pena lutar. Aquelas que mesmo não vivenciando o mesmo que eu, sabem estar, sabem empoderar, sabem fazer o dia mais feliz a alguém. São estas pessoas que vale a pena acolher na nossa rede e sorrir de volta. É por isto, que a minha noite, apesar de ter começado em questionamento, acabou com um fortalecimento de quem eu sou e do caminho que estou a fazer.
É por estas pessoas que vale.
É por estas pessoas que vale o meu amor e carinho.
Num mês tão importante quanto este, o orgulho opõe-se à vergonha de estar no silêncio, de não ser visível e de nos faltar constantemente pares.
Dani
Imagem: Daniela Bento - Relógio Steampunk