Transgredir o (im)perceptível: Um tecido rasgado e um tecido criado

Daniela Filipe Bento

Quem sou eu? É talvez a pergunta que todas as pessoas já experienciaram uma vez na vida. As razões para tal podem ser muitas e diversas e talvez tantas quantas as pessoas Crescemos, aprendemos e entendemos a nossa realidade através dos códigos sociais e mecanismos de género e outros que vão operando na sociedade a uma escala estrutural e sistémica. Pode haver, ou não, momentos em que interrogamos os limites de género e outros ao co-habitar numa sociedade euro-centrada. Noutras sociedades onde talvez estes não operam.

Os nossos limites são fluidos durante a nossa existência. Todos os dias adequamos a nossa vivência às alterações estruturais que vão acontecendo. Por vezes benéficas, outras não tanto, ou até sendo contrárias aos nossos valores pessoais e colectivos. Os códigos sociais e os mecanismos de género estão mesclados com o tecido social. Nesse sentido, alguma transgressão passa por imperceptivelmente romper este tecido abrindo espaço para novas realidades. Porém, podemos perguntar se é este tecido que queremos romper ou se é um novo que queremos criar, transgredindo perceptivelmente a ideia que a sociedade deve cumprir com estruturas dominantes.

É numa sociedade dominada pelo machismo, cis-hetero-mono-sexismo, racismo, xenofobia, capacitismo, entre outras formas de violência, que se coloca estas pessoas no silêncio e na invisibilidade. É neste silêncio e na invisibilidade que crescemos, nos criamos e nos desenvolvemos. Ou seja, quem sou eu? Voltamos à pergunta inicial. Sou o produto daquilo que a sociedade me impõe, mas também dos meus próprios questionamentos. Perguntar “quem sou eu” é uma forma de reconhecer o meu lugar na sociedade e que voz ocupo.

O meu corpo é transgressor. A minha identidade é transgressora e é transgressora quando coloco a dúvida a quem se aproxima. Entender-me numa fronteira, nos limites de várias identidades, onde sou quem sou, é um ato de transgressão. É rejeitar este tecido e criar um novo baseado na pura autodeterminação de cada pessoa. Para mim transgredir é caminhar pelas fronteiras da existência. Consciente que a minha transgressão mata, não só externamente, mas internamente.

Transgredir leva-me a outra realidade. Onde me situo no feminismo, onde a minha transgressão tem lugar. Entendo-me no transfeminismo pela dúvida de quem sou. É no transfeminismo que vejo a possibilidade de ter dúvidas, de questionar, de não ter certezas. A transgressão surge como forma de sobrevivência da nossa identidade. Transgredir nesta sociedade é, também, criar mecanismos colectivos de sobrevivência. É criar as nossas próprias formas de viver no mundo. Criar-nos desde as margens até um mundo que sintamos justo, onde transgredir deixe de ser sobrevivência.

A minha transgressão exterior é visível, perceptível. Porém, a interior, não o é. Transgredir exteriormente pode ser também transgredir a nossa própria mente. Criar uma identidade que nasce da dúvida e do questionamento. Como tal, quem sou eu? Eu nasço da dúvida, mas construo-me na transgressão. O meu corpo é transgressor. A minha identidade é transgressora. Reconheço o meu lugar e as opressões de que sou alvo, mas também reconheço que há outras formas de opressão que eu não nunca irei viver. Resta-me continuar a ouvir e aprender, assumindo a incomodidade dos meus privilégios, entendendo que deles benefício. Fazendo deles uma ferramenta para a justiça social.

É com esta consciência que cresço e me desenvolvo. A cada dia, a cada momento. Pronta para transgredir, transformar e existir numa sociedade que não foi construída nos pilares da diversidade, mas do controlo, do bloqueio, da divisão e imposição de formas de viver e estar no mundo.

Quero acreditar que no futuro… transgredir não seja necessário. Porque a sociedade será mutável e flexível, reconhecendo as diferenças de todas as pessoas e, como tal, a sua diversidade. Porque é nesta sociedade que eu gostaria de viver. Onde a palavra transgredir seja apenas … um conto na história do passado.

Originalmente publicado na Zine UMAR - Coimbra em 2023

página criada a 11 de maio de 2025