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Quando a ajuda é necessária...

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 17 de novembro de 2019 · 6 mins read
Quando a ajuda é necessária...
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É sexta feira, estou-me a sentir mal. Tenho dificuldades em estar no trabalho, arrasto-me para as aulas ao fim do dia. Começo a sentir-me desligar. Chego a casa, deito-me, fico. No fim de semana que se segue, deito-me, fico. Apática, sem vontade de qualquer acção arrasto-me em pequenas actividades para procurar estar melhor. Falo pouco, a vontade é pouca. Procuro o isolamento. Uma quebra que deveria estar a germinar há algum tempo, mas aconteceu. Nos dias seguintes acontece tudo muito rápido, começo a ter ataques de ansiedade, a viajar no tempo, a deslocar-me da realidade. Perco a capacidade de executar quaisquer das minhas tarefa. Estou a cair. Foi assim que aconteceu há pouco mais de um mês.

Ajuda

Tenho tido uma estabilidade relativa, há três anos que não tinha uma crise que me incapacita-se desta maneira. Pequenos altos e baixos que vou registrando, com rápida recuperação. Desta vez não apanhei sinais que deveriam ser óbvios, o ter deixado de comer em condições, alguns pensamentos parasitas, ruminantes e obsessivos , o estar apática durante três dias seguidos, procurar o isolamento. Quanto mais olho para trás, mais evidente fica que estava a crescer em mim uma possível crise. Nesse primeiro fim de semana deveria ter pedido ajuda, deveria ter seguido directa para o hospital. Enganada nos meus próprios sentires, deixei-me pensar que seria apenas cansaço e que precisava descansar o fim de semana.

É neste período de acontecimentos rápidos que precisei de mudar a estratégia que normalmente usava: procurar ajuda. Eu não falava, não escrevia, não conseguia ter um pensamento coerente - ainda hoje muitas tarefas que exijam um pensamento mais complexo me custam imenso. Neste momento ficou claro que não queria passar outra crise sozinha, renegando-me da sociedade, excluindo-me, afundando-me mais depressa e ter menos capacidade prática de lidar com as decisões do dia a dia. Porque verdade seja dita: perdi qualquer perspectiva, não havia decisão que eu conseguisse tomar de uma forma consciente, pensada e efectiva.

Com todas as dificuldades inerentes a uma mudança de estratégia associadas a um comportamento viciado, procurei, com ajuda, criar uma rede primária de cuidados e apoio. Um conjunto de pessoas que estariam de forma mais próxima ao meu lado. A criação desta rede permitiu-me, até hoje, manter-me acompanhada em muitos momentos, não estando sozinha o tempo inteiro e permitindo-me ir tendo um novo olhar sobre o meu estado.

A existência de uma rede de apoio é de extrema importância quando se vive com um diagnóstico referencial como o meu. Muitas crises podem ser muito destrutivas no impacto que têm sobre a vida de uma pessoa: trabalho, escola, relações, família, etc… Ao mesmo tempo, quando se está numa crise depressiva perdemos toda a capacidade de ter um pensamento optimista, coerente e em perspectiva. Os sintomas físicos e psíquicos são imensos e geram muitos sentires incoerentes com a realidade. Há uma troca de papéis: a doença tenta-se tornar na pessoa. É neste sentido, que esta rede atua, dando-nos um olhar mais realista, mais congruente, ajudando-nos a tomar algumas decisões importantes e acima de tudo está.

Reparo que, graças a existência destas pessoas, o meu estado tem melhorado de forma exponencialmente mais rápida. Tenho espaço para me exprimir, para ser ouvida, para gritar, para sentir aconchego. Ajuda e incentivo para fazer algumas tarefas, até mesmo força para continuar a escrever. Percebo, assim, toda a diferença que faz ter pessoas ao nosso lado, alimentando-nos de bons sentires.

Tenho aprendido muito com esta crise, sobretudo estou a aprender a falar das minhas necessidades e colocá-las em primeiro plano. Estou a aprender a receber ajuda, a gerir movimentos chave durante este período que já me encontro em recuperação. Tenho aprendido, ainda que com muito esforço, que devo descansar e deixar-me ir ao meu ritmo, sem pressão para ficar melhor. Por vezes o medo de não sair deste estado faz-nos querer apressar a recuperação e assim piorar ainda mais o estado em que se está devido a ansiedade, má auto-estima, falta de confiança, falta de acreditar, etc…

O meu problema é crónico e cíclico, aparece e desaparece. Posso ter crises que consigo prever, mas outras posso não conseguir por perder perspectiva. Neste sentido, existir um grupo de pessoas que têm entendimento sobre a doença, sobre os meus sintomas e sinais, é uma mais valia para evitar cair noutra crise.

De um ponto de vista macro, tenho consciência que o meu estado de saúde vai para além do que é individual. Existe, por certo, uma componente de predisposição genética, mas existe uma fatia de responsabilidade social. Na sociedade atual, mais individualista, a aproximação aos problemas de saúde mental são feitas única e exclusivamente na pessoa, dotando-a da responsabilidade do seu estar e da sua própria realidade, alienando-o do resto da sociedade. Assim existe falta de uma aproximação colectiva, de entendimento que a sociedade também tem responsabilidade sobre como a pessoa evolui. É nesta lógica que entendo que muitas vezes as pessoas, no geral, não têm informação e facilidade em acompanhar estas situações porque não estão habituadas a coletivizar os seus sentires e estares. Procura-se, desta forma, deixar para a pessoa o seu próprio tratamento e luta interna, descartando a responsabilidade social para com ela. Em muitas situações, as pessoas vêem-se sozinhas na precariedade, preocupadas com a manutenção da sua sobrevivência, faltando-lhes oportunidades mais seguras, o que vai dificultando a sua recuperação.

Há, na generalidade, pouca atenção aos cuidados de saúde da mente e, não falo especificamente dos diagnósticos de saúde mental. O individualismo, a discriminação em vários níveis, a maior dificuldade de comunicação directa, o excesso de estímulos, a prática consumista, a precariedade, a falta de suporte clínico, a falta de reconhecimento da existência da outra pessoa na nossa vida: tudo isto influencia a maneira como nos mantemos sãs.

Não acredito que os problemas de saúde mental desaparecessem numa sociedade que trabalha colectivamente os sentires, mas acredito que seria mais fácil ultrapassar determinadas situações do dia a dia. Que seria mais simples falar do que se sente e das dificuldades e, com isso, procurar resoluções colectivas de maior eficácia para a pessoa que está procurando ajuda e para as demais que também a acompanham. Não nos podemos esquecer que estes problemas também afetam as pessoas próximas e que é importante que também tenham o seu espaço de estabilidade emocional.

Por fim, não posso deixar de dizer que estou grata por ter estas pessoas na minha vida.
Por fim, não posso deixar de dizer que tudo ficará melhor
Por fim, não posso deixar de sentir esperança

Dani

Imagem: Together We Can - Cherie Stafford

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma