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Porque o discurso também fere...

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 4 de maio de 2025 · 7 mins read
Eu própria sentada num divãn olhando a janela
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Já estamos no princípio de Maio, o tempo voa… e eu fico. O tempo vai… e eu fico. O tempo segue… e eu fico. Num artigo anterior (Um primeiro trimestre, para não haver outro…), escrevi sobre os meus primeiros três meses do ano 2025, em que vivi com alguma instabilidade, algum medo de ruptura e, ou até mesmo, vergonha por ser quem sou e, como sou. Tudo isto culminou em duas semanas de pausa forçada. Não conseguir orientar o pensamento de forma estruturada, não me permitia trabalhar em condições, somando o cansaço atroz e a falta de conexão sintónica entre o meu self e o meu corpo. Uma conexão desconexa que me estava a provocar ansiedade, mau estar, fazendo-me colapsar nas minhas próprias dúvidas e incertezas.

Confesso que a situação política e social em que vivemos está-me a causar bastante perplexidade e instabilidade. Uma instabilidade física, emocional e mental que vem mexer com a minha integridade pessoal (física e psicológica). Ler/ouvir as notícias do dia tem sido muito difícil (e sim, larguei todas as redes sociais mainstream), principalmente quando nós, mulheres trans (dentro da binariedade ou não), estamos sempre no centro do debate, mas nunca no centro das políticas de inclusão positivas. Estamos num período histórico em que, novamente, muitos setores reacionários anti Direitos Humanos, afirmam que nem somos mulheres, nem somos pessoas com emoções, dignidade ou íntegras. Somos apenas fabricadas pela sociedade capital, somos um produto não biológico (porque existem as mulheres biológicas e nós, que devemos ser de outra constituição que não biológica). Somos vistas como as agressoras e as ladras do sistema, como as enganadoras e as causadoras do pânico moral.

Porém, a nossa dor, a nossa dúvida e medo é o avultado produto de uma sociedade doente, podre, desvinculada da realidade. Uma sociedade apolítica que cospe a sua realidade em prol de fantasias como a ordem e o poder. As mesmas pessoas que violentam mulheres trans, que as matam de uma forma direta e/ou indireta, mas que são as primeiras a exotizar e a fetichizar o corpo trans-feminino, as primeiras a “nudar-nos” no mundo - por favor não.

Uma sociedade que a cada dia me tem trazido mais dúvidas, mais incertezas, não porque não sei quem sou, mas porque me pergunto continuamente: Até que momento a minha vida vai ser como é? Até que dia vou acordar e sentir que sou capaz de enfrentar a violência de que sou alvo consecutivamente? Até que momento vou sair à rua sem olhar para trás ou por cima do ombro, implorando que não me reconheçam enquanto uma mulher trans? Enquanto uma pessoa com género dissidente? O mundo está a assustar-me. O mundo está a colocar-me numa caixa novamente. O mundo evoca a sua liberdade de expressão em nome do sofrimento das demais pessoas que, como eu, lutam todos os dias para se sentirem vivas.

Não é fácil.

Não é fácil e este clima está a mexer comigo. Sei que vou enfrentá-lo, sem que o vou ultrapassar - não há outra solução possível. Mas fica o desabafo, o sentir a vida a fugir entre os dedos, o sentir o corpo deixar de ser meu novamente - o sentir deixar de ser eu, novamente. Enquanto puder, vou estar na luta, enquanto puder vou estar aqui. Mas sinto horrores nos dias de hoje, sinto medo e sinto tristeza.

As estações do ano provocam-me sempre fases de crise de saúde, entre a euforia e a depressão. Porém, acho que se estavam controladas, agora há alguns sintomas que são exacerbados pela instabilidade sócio-política. Uma pressão constante que recai sobre nós, sobre quem somos e como nos expressamos. Não é uma crise como outra qualquer. É uma crise político-identitária, pois sinto pressão em reverter todos os meus alinhamentos políticos para conseguir ter uma vida, para conseguir estar em sociedade e para conseguir não morrer (mesmo que simbolicamente). E a pior morte que posso ter é não conseguir ser eu, mas ser eu… começa a ser uma nuvem pesada de emoções que se contrastam continuamente no tempo e no espaço.

Pessoas dentro do campo da mono-cis-heteronormatividade nunca poderão entender este sentir em profundidade, ainda que possam empatizar. Mas nunca terão a vida em questionamento por serem monogâmicas, cis e hetero, podem por outras razões, mas não por estas. Acho que até há pouco tempo não queria aceitar que este contexto me estava a provocar estas oscilações nos meus ciclos, tenho procurado outros gatilhos para a minha situação instável de saúde - mas não é preciso ir longe: connosco, mulheres trans a ser alvo da violência institucional e política contínua é compreensível que eu oscile mais, que tenha de despender mais energia para estar bem e que o meu dia passe a ser despendido a procurar ferramentas de sobrevivência emocional.

Lembro-me da minha primeira consulta na Psiquiatria - Sexologia Clínica, quando procurei o médico para mudar o meu nome (porque àquela data, ainda era necessário um aval médico): eu estava bastante à vontade com quem era, com o que queria - 2 anos depois estava doente, estava cansada por ter sido posta à prova consulta após consulta até duvidar de mim, como uma prova de endurance que ninguém tem de passar quando se reconhece a si mesma. Foram dos anos em que tudo o que sabia de mim foi questionado e foi patologizado - até perguntas sobre quando deixei as fraldas foram necessárias, testes motores, de memória, de personalidade, até de QI, tudo… Hoje, 10 anos depois, estou a sentir o mesmo, mas de uma forma mais transversal, mais sistémica e profunda, pois tem origens muito mais estruturais do que apenas as minhas consultas - a minha relação pessoa-médico - mas todas as minhas relações pessoa-pessoas.

Custa-me. Custa-me bastante. A minha trans feminilidade está sempre a ser colocada à prova. Porque sou, ou não sou, ou porque não sou o suficiente, ou porque algo… sempre. Se sei que é preciso continuar a lutar? Sei. Se sei que é preciso ter força e continuar? Sei. Não preciso que me digam, lembro-me disso a cada momento do dia e da noite. Mas neste momento só me apetece desligar de toda esta realidade e isso tem sido paradoxal, pelo menos para quem sempre amou a vida. De poder acordar um dia e sentir que não sou parte de uma das comunidades que mais serve a culpa dos problemas da moral social, da decadência desta sociedade em que vivemos.

Mas não, não somos nós que apodrecemos este canto da sociedade, foi a inação de quem tem responsabilidade social e política. Foi a inação de uma população perante o crescimento do discurso de ódio, do discurso anti Direitos Humanos, por ser permissiva e por ser complacente ao mesmo.

A minha saúde mental agrava-se com esta conjuntura.Se tenho medo? Tenho. Se continuo aqui? Continuo. Se é possível ser indiferente? Para mim não é. A indiferença foi o que nos levou até onde estamos hoje. Essa indiferença, essa mesmo.

Quero pensar que o mundo pode melhorar, que pode ser mais justo para com todas as pessoas, mas até lá, ainda há muito caminho para percorrer e, para já, enrijecer para não andar para trás. Enrijecer pela manutenção do que demoramos anos a conquistar e a tomar como um direito.

As minhas dificuldades estão cá e socializar tem sido um desafio cada vez mais difícil para mim… a minha introversão tem tomado conta do meu estar, pois é mais seguro o meu silêncio. É mais seguro estar neste lugar.

Respiro fundo, respiro fundo, pois quero ser capaz de sobreviver.
Respiro fundo, respiro fundo, pois quero ser capaz de estar.
Respiro fundo, expiro… pois a minha voz não sai, apenas ecoa um som frágil e vulnerável.
Respiro fundo, inspiro…pois o ar da sociedade fede, e eu apenas tenho esse para respirar.

Dani

Imagem: Pedro Gomes Almeida - Dani Bento

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma