Vou no comboio, são 21h, saí há pouco tempo do Porto. Olho a janela e vejo o sol a pôr-se de um lado, vejo as luzes das cidades do outro. Ainda é dia, mas a noite está a chegar. Sigo o caminho, acelero e desacelero, percorro quilómetros até que paro… para voltar a arrancar outra vez. Mas vou, vou sempre, de encontro ao meu destino, parto para chegar. Os carros vão passando e nós com mais velocidade do que eles. Caminhamos. Não paramos. As luzes das casas cintilam como estrelas no céu, mas na terra. A minha voz ecoa por entre estas palavras. Foram dois dias de socialização intensa, a bateria social está quase descarregada. Mas ainda dá. Ainda resta e ainda vai sobrar.
Hoje é terça, dois dias depois de umas eleições que tomaram conta da minha viagem de vinda para o Porto. Depois de ter votado pela manhã, só me restava esperar pela noite, não podíamos fazer mais nada… os dados foram lançados, só precisávamos de esperar pararem, onde pararam. Confesso, apesar do meu normal optimismo, nesta situação em particular, esperava este resultado. Disse para mim várias vezes, vai ser mau, só falta saber o quanto mau vai ser. E assim se cumpriu. E não, não sou eu que tenho uma habilidade especial para adivinhar estas coisas. É a sociedade, é esta sociedade que tem uma habilidade de se mostrar cada vez mais num fosso, contaminada e dilacerada por quem quer aquilo que não é bom, para quem é bom. Há pessoas questionáveis em todos os sectores da sociedade, mas o que aconteceu não é questionável, é deplorável.
Sinto, sinto que caminho. E como nestes dias tenho melhorado o meu estado, também a minha capacidade de resposta está muito diferente. Não me sinto totalmente apática, não me sinto totalmente desconectada, senão seriam mais alguns dias a comer com sabor a papel. Mas como não estou já nesse lugar de apatia total, nem de desconexão total, há sabores que vou conseguindo distinguir e nesse sentido, também a interação social está noutro lugar. Um lugar que não posso esquecer e que, pessoalmente, não posso abandonar. Durante os últimos dias, talvez por estar em contextos mais específicos, o tom era o mesmo. Um tom melancólico, um tom de quem vai em frente, mesmo no cansaço, mas que na realidade, só queria um período de pausa. É nessa ambiguidade que sinto as pessoas com quem estive durante os últimos dias.
Atento ao que as pessoas dizem e interpreto as entrelinhas. Porque sim, também interpreto as minhas entrelinhas, o que verdadeiramente queria dizer ou o que verdadeiramente estou a sentir - nem por sorte, na televisão do comboio fala-se dos dados em viés que as próprias redes sociais e a inteligência artificial nos trazem. Também entendo os meus próprios viés e sei que os tenho. Não sou nem estou imune a esses processos. Porém não ser imune não pode servir como desculpa para não ter uma atitude crítica e questionar aquilo que se diz.
Sinto, sinto.
E não é fácil sentir.
Mas é necessário.
O nosso modo de estar no mundo mudou. Mudou mesmo muito em poucos anos. A nossa disponibilidade emocional mudou. Também mudou muito, mesmo muito em poucos anos.
A nossa sociedade abandonou-se, abandonou-se a si mesma. Entregou-se à violência de forma gratuita, entregou-se à ignorância de forma gratuita - literalmente. Hoje em dia é demasiado fácil chegar a este lugar, mas é bastante difícil sair dele. Infelizmente. No entanto, ainda que seja difícil, não é impossível e todas as pessoas têm a sua responsabilidade, todas as pessoas têm algo a acrescentar. Da mesma maneira que nos colocam nesta situação, são também as pessoas que nos vão permitir sair daqui, deste caminho e fazer uma nova partida.
Acredito nisto. Acredito na organização e na construção de base. Acredito em mudanças estruturais e sistémicas. Acredito em revolução, quando as reformas não são possíveis. A ideia revolucionária de existir, não tem espaço numa reforma social, mas sim numa transformação radical dos nossos atos e das nossas formas de estar no mundo. Acredito na pessoa que está à minha frente, mas também nas que estão ao meu lado. Acredito e vou continuar a acreditar. Mas, ainda assim, não deixa de ser decepcionante, que o meu acreditar tenha como resposta, a imposição de valores que nada têm a ver com a realidade, com propósitos que nada têm a ver com o que a História nos tem ensinado, com atribuições que em nada são naturais. Um acreditar que é transcrito numa movimentação anti-humana, anti-ser e anti-existir.
Que as interpretações sejam apenas isso, interpretações. E com isto, não podemos fazer das interpretações a verdade absoluta. Não podemos fazer das interpretações o mal menor, e muito menos o mal maior. Vivemos numa sociedade de interpretações, mas não questionamos as premissas iniciais, nem sequer questionamos os resultados. Enquanto for assim… será difícil avançar.
E sim, digo avançar, sem medo de dizer avançar, porque o que vivemos hoje em dia é retrocesso. Uma falsa pretensão de sociedade mais justa, mas no fundo, uma pretensão de uma sociedade virada para as mesmas pessoas, para os mesmos processos e para as mesmas circunstâncias.
Com isto, não perdoo. Não perdoo quem escolheu que tivéssemos neste momento, esta perspectiva (ou não perspectiva) de futuro. Não perdoo, nem vou perdoar nunca, mas também não vou abandonar. Pois há uma diferença entre nós… eu vejo-te, tu não me vês. Porque dentro das minhas incertezas, entre linhas e dificuldades, eu vejo-te… tu não me vês.
O teu sorriso seguro não deixa dúvidas,
porque tu não me vês.
PS: Este artigo foi escrito dois dias depois das Eleições Legislativas 2025 em Portugal
Dani
Imagem: Ryusei - trains