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Os movimentos repetitivos

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 31 de outubro de 2019 · 3 mins read
Os movimentos repetitivos
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Estou deitada, respondendo ao apelo de escrever com toda a energia que me resta. Os músculos não respondem, a cabeça pende para o lado. Queria deitar e dormir. Queria adormecer por uns minutos apenas. Repousar apenas. As inseguranças estão a tomar conta de mim e as dificuldades a aparecer. A mente a ficar em estados alternados entre cheia e vazia. Cheia e vazia, cheia e vazia, cheia e vazia.

Repetição

Os aviões passam. A cada dois minutos. Os aviões passam.
Os carros param e arrancam. A cada segundo. Os carros param e arrancam.
O martelo bate. A cada pulso. O martelo bate.

Todos os sons, sequenciais, constantes, permanentes. Os movimentos repetitivos. Tal como a minha mente neste momento: repetitiva - cheia e vazia, cheia e vazia. Cada tecla pressionada, um som, uma repetição. Um som quase inaudível, mas um som que está lá. Tal como a minha mente neste momento: vazia, mas um pensamento que está lá. Um pensamento corrosivo que se alimenta do meu cansaço e tenta perturbar o meu estado de ânimo. Um pensamento corrosivo, parasita que invade todo o meu sistema e procura estabelecer-se lá: como um vírus ou uma bactéria. Eu sou a casa nova desse pensamento. Para revisitar e reconstruir.

Olho para os meus lados, fecho os olhos, mas continuo a teclar. Só queria descansar. Só queria ser capaz de repousar. As mãos procuram as teclas por mecânica automática, elas sabem encontrar o seu destino. O som diz-me para onde elas têm de ir. O som guia-as. Porém, neste momento, ao contrário das minhas mãos, eu não consigo sentir um guia interno, sinto-me perdida, sinto-me patinando no mesmo sítio e a escorregar para baixo. Preciso de um toque. Preciso de acordar para a realidade e tomar conta da minha mente novamente, preciso desencontrar-me do parasita que me quer possuir. Do parasita que me quer conquistar.

Sinto-me perdida. Não consigo, neste momento não consigo pensar adequadamente, tudo está visível por um prisma deformado, por um prisma partido. Não consigo, neste momento não consigo sentir no corpo, tudo está misturado, dor e anestesia. Não consigo, neste momento não consigo achar uma linha condutora, tudo está enrolado como um novelo de lã. Não consigo, neste momento não consigo parar e descansar, parar e reflectir. O pouco que me surge, o pouco que me é visível é duro, muito duro e cruel. O parasita está aí, forte, à espera. O parasita está aí, decidido, no meu interior mais profundo. Sinto muita dificuldade para escrever este texto, ainda que saiba que me faça bem expressar o que sinto actualmente. Mas está a ser difícil, muito. Desconcentro-me, olho para o lado, fecho os olhos e contínuo. Sempre. Hoje foi um dia destes, destes em que a auto-estima vai abaixo, em que o mundo passa a ser escuro e difícil, em que o mundo passa a ser um buraco sem fundo. Hoje foi um desses dias, anestesiada, vazia.

Hoje foi um desses dias. Hoje acredito que nada vai melhorar, acredito que este será o meu destino. Hoje acredito que não terei qualquer chance, que não terei hipótese. Que o mundo será sempre um mundo de tristeza, de dificuldades e de luta. Hoje acredito que estou condenada. Não consigo sentir outra coisa. Outra coisa é impossível de ser sentida.

Os meus pés tremem repetitivamente, a minha perna responde repetitivamente. Eu olho para os lados repetitivamente, a minha cabeça gira repetitivamente. A minha mente pensa repetitivamente, as imagens circulam repetitivamente. Tudo é repetitivo, tudo é demasiado. Tudo é.

Estou a balançar, a balançar na esperança de me sentir. Na esperança de deixar de acreditar. Não quero acreditar no que acredito neste momento, não quero acreditar no que sinto neste momento. Porém sei que tenho de ter paciência comigo mesma. Muita paciência.

Neste momento não consigo fazer grandes reflexões, também não me consigo enquadrar.
Neste momento preciso suster, preciso ter força e permanecer atenta
Neste momento preciso calma, combater os fantasmas e permanecer cuidada.
Neste momento, mais do que outros momentos, é preciso respirar fundo.

Porque quero não acreditar no que acredito agora.

Dani

Imagem: industrial evolution - miuenski miuenski

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma