geral, bem estar,

O Sol e a Árvore

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 4 de julho de 2025 · 6 mins read
Horizonte visto do areal, na praia do Meco
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O dia está nublado, faz uma brisa fresca e o Sol espreita de veza vez. Tímido. Talvez a timidez seja parte deste processo estranho e complexo que é a Natureza. Um mundo de diversidade, de diferenças e unicidades. Talvez ser uma pessoa humana na sua individualidade é das coisas mais singulares que conheço, mas também, das mais belas. Penso que a nossa diversidade, faz bem ao mundo. Tratar o mundo de forma contrária a isto: hegemonias e generalizações, são passos dados para irmos contra o nosso próprio e autêntico self.

Hoje estava na praia e deixei-me ficar, singularmente, sentada na areia, a olhar para o oceano. Sorria, sorria porque acredito fazer parte dessa parte que se orgulha da diversidade. Sorria, porque acredito que as pessoas existem todas em potencial e em diversidade, para onde isto tende, já são outras reflexões - mais complicadas até. Porém, não gosto de deixar de acreditar que um dia, poderemos usufruir em sociedade de um mundo melhor e mais rico, justo e transversalmente mais representativo. Acredito e vou continuar a acreditar. Ingenuidade ou não, acho que devo seguir os meus princípios.

Sorrio. E cada vez que sorrio, menos me lembro do que quero escrever nestas linhas. Fico apenas concentrada no meu… sorriso. Olho os pequenos, dormem, cada um no seu sítio. Olho a janela, o sol vai-se pondo e a luz vai escasseando. Olho para dentro de mim própria, há um sentir em silêncio que estou a gostar, que estou a abraçar e que estou a deixar existir. Faz-me bem, faz-me muito bem. Eu preciso de momentos de retirada, de introspecção e silenciosos depois de estar em espaços com muitas pessoas e muitos estímulos. Preciso, mas já aprendi que posso dar-me o que preciso, não tem mal e nem é problemático… é só isso: reduzir a carga sensorial antes de voltar a trabalhar. Por isso escolhi o Domingo como dia de pausa, como o dia em que o trabalho é palavra banida do meu léxico e do meu dicionário.

Parar é importante. Sobretudo, parar sem sentir culpa por se parar. Parar sem estar a pensar nas mil e uma coisas que deveriam estar em curso, mas isso não é vida, é pedir exaustão ao futuro e eu sei o que é estar nesses lugares. Mas não quero mais estar aí… não quero e não posso. Há mudanças positivas na minha vida e é isso que é importante celebrar… e é isso que me permite sorrir. Olho para trás e vejo de onde vim e para onde vou, e não quero esquecer isso.

Estou calma e tranquila. Respiro fundo, suspiro.

Fecho os olhos e adormeço.

Volto a acordar no dia seguinte e sento-me novamente com o som das teclas a serem pressionadas. Procuro encontrar-me no texto que deixei para trás. Textos a dois dias são comuns no meu dia a dia, entre escrever e descansar, o tempo flutua entre o real e o sonho.

O tempo continua com nuvens, mas o céu hoje desperta mais algum Sol. Reencontrei-me e agora recrio-me no texto que comecei a escrever ontem ao fim do dia.

Os últimos meses foram cheios de alterações de humor, mudanças de energia, afastamento social e dificuldades em executar quaisquer tarefas. Hoje, hoje mesmo, estou noutro lugar. O meu humor está mais estável, a minha energia subiu, tenho socializado um pouco mais e tenho conseguido executar algumas tarefas. Ter oscilações de humor acutilantes não é fácil, mexe com a minha interação social e capacidade de me exprimir, mexe com a minha capacidade de execução e de sentir. Por quanto, acrescenta a isso falta de energia por diversos fatores, físicos e psicológicos.

Estou calma e tranquila. Respiro fundo, suspiro.

Semicerro os olhos e observo as árvores que brotam para a minha varanda.

Claramente é Verão, o Sol até tarde, as folhas verdes e as flores amarelas. As nuvens vão-se dissipando. Um pouco como as nuvens que vão circulando na minha mente, dissipando. A cada dia, tudo um pouco mais azul céu. Acredito que, de certa forma, as minhas características todas conferem-me alguma complexidade, não no sentido de ser especial, mas no sentido de ter formas de estar que em si, são complexas, limítrofes e difíceis. Não sinto que seja de todo uma pessoa de percurso fácil, mas também é esse percurso, essa história (ou pelo menos a narrativa que tenho) e essa complexidade que me trouxeram até onde estou hoje. Há uns anos não acreditaria estar neste lugar, há uns anos não acreditaria que poderia vir a poder acreditar em mim ou ter a possibilidade de ser menos crítica comigo mesma. Hoje em dia, ainda o sou, mas de uma forma diferente. Mais saudável, mais segura e mais positiva. Há momentos e momentos, mas no geral, penso que estou neste lugar de menos conflito interior.

Há umas semanas o meu corpo estava desconectado de mim, não estava sintónica com ele… o meu corpo e o meu self estavam de costas viradas, zangados um com o outro. O meu corpo a expressar as suas palavras, as suas vivências, o seu estar… por outro lado, o meu self, a fazer-me caminhar sem ele, o corpo, puxando-me pela autocrítica, sabotando as minhas próprias vivências. A estabilidade para mim é o caos e o caos a estabilidade. E é essa estabilidade, que tanto saboto, que me leva ao caos e a reafirmar a minha própria sabotagem. Mas não deixa de ser um processo contínuo, lento e trabalhoso. Diminuir este conflito, diminuir este estar fora de páginas do papel.

A semana passada falei de insultos e outras violências. Hoje, quero falar do “desinsulto”. O “desinsulto” como peça fundamental da revolução, o “desinsulto” como resistência e como forma de contrariar o propósito do próprio insulto. O “desinsulto” é como uma entidade abstrata que, tal como a apropriação do insulto, nos dá ferramentas. O “desinsulto” é falar no vazio de ideias pré-concebidas, no vazio de assunções. O “desinsulto” é permitir às pessoas serem aquilo que elas são, pelo que são e pelo que querem ser. O “desinsulto” é o curso da autodeterminação. É sem margem de dúvidas a capacidade de estar no mundo como uma árvore e o Sol, numa dança diária, contínua, lírica e tranquila… O “desinsulto” é assim a minha arma, a minha forma de desfazer o insulto - deixando as pessoas serem, simplesmente.

Quero acreditar que com os dias, o Sol vai continuar a dançar e a árvore também, numa simbiose perfeita entre a luz e a terra. Os dias começam agora a ficar mais pequenos, mas o Sol estará lá sempre… até que um dia, se esgote. Porém, apesar da história e da complexidade, o Sol nunca ficará de costas com a vida, o Sol “desinsulta” a vida e a vida “desinsulta” o Sol harmoniosamente.

Porque o sol é o Sol e eu, apenas eu,
Aqui deixo,
Aqui pertenço,
Aqui sinto.

Dani

PS: Artigo escrito a 22 de Junho, 2025

Imagem: Daniela Bento - Praia do Meco

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma