
É Junho, passaram mais de 90 dias desde que senti as primeiras medidas de confinamento social derivadas da COVID-19. A expressão usada é “distância social”, gosto mais de falar em “distância física de segurança”. Não queremos as pessoas socialmente distantes, muito pelo contrário, é neste momento que urge a criação de redes, de redes de solidariedade, de apoio e cuidado. É nesta altura que devemos estar em proximidade. Estar com atenção e com capacidade de ouvir activamente.
Foi com este pensamento em mente que comecei o meu confinamento. Tinha há pouco tempo saído de um episódio de depressão major (e ainda a recuperar), sabia que este iria ser um novo desafio à minha estabilidade. Um desafio acompanhado pela impossibilidade de me fazer acompanhar da mesma maneira pelas pessoas que me são queridas. Um desafio que nasce de uma necessidade globalizada, mas que é questionável nos seus efeitos a curto, médio e longo termo na nossa saúde mental. Não penso só na deficiência e sobrelotação dos meios para acompanhar pessoas infectadas com a COVID-19, mas penso sobretudo na fraca ou praticamente inexistente capacidade de dar resposta às situações de saúde mental que ocorrem derivadas deste momento histórico. Do isolamento desenvolve-se uma série de sintomas e, sobretudo, agravam para quem já deles padece.
Começo o meu primeiro dia de confinamento a pensar no que poderia fazer para salvaguardar a minha sanidade mental, pensando eu, nessa altura, que o processo iria ser mais rápido - não acreditava que em Junho ainda estivessemos a dar os primeiros passos para poder ter uma vida um pouco mais próxima do que tínhamos. As estratégias tiveram de aparecer rápido e de maneira consistente.
Porém, o mundo não parou na sua totalidade, muitas pessoas continuaram os seus trabalhos para que pessoas como eu tivessem a possibilidade de estar em casa sem me expor aos riscos. Muitas pessoas arriscaram a sua saúde dia a após dia para garantir que o sistema de saúde continuasse a funcionar, que os alimentos continuassem a estar na nossa mesa, que os transportes nos levassem a algum lugar, que a nossa internet funcionasse, … Muitas pessoas não tiverem possibilidade de pensar em estratégias, a sua precariedade tornou-se ainda mais precária. O facto de poder continuar a trabalhar em casa, nas condições que continuei, é em si um privilégio face a muitas das situações que se encontram em meu redor.
O meu problema relacionou-se com isolamento. Como iria eu adaptar-me a esta nova forma de viver os dias? Vivendo sozinha, trabalhando em casa e sem qualquer contacto social, alguma coisa era necessária fazer. Era importante pensar em estratégias. No entanto, já tinha a experiência que adquiri da última crise que tive, essa foi uma constatação importante para suster novas ideias, novos métodos e novas abordagens.
De uma forma geral, procurei ressignificar o tempo que passava sozinha e, simultaneamente, ressignificando o meu tempo de trabalho, lazer e descanso. De uma forma em particular, procurei técnicas pragmáticas para me afastar do isolamento. Algumas coisas tornaram-se úteis a médio e longo prazo como, por exemplo, ter um caderno onde registo todas as técnicas que vou implementando para me sentir estável.
Entre muitas coisas que vou fazendo dia após dia, há algumas que sinto ser extremamente necessárias para me manter motivada (quando possível). Escrever e manter um diário tem sido imensamente importante para ter um contacto com o meu dia a dia e com aquilo que penso e sinto e, para além disso, permite-me poder ter um olhar na minha história e perceber determinados padrões. Os passeios de manhã, antes de entrar ao trabalho, tornaram-se indispensáveis para criar motivação para o dia, mantendo uma regularidade horária.Iniciei um diário fotográfico, que vou acompanhando com uns textos pequenos, dos quais pretendo derivar textos maiores e mais completos - neste momento conto com 8 semanas de fotografia. Dado que também estou a acabar a licenciatura, mesmo nestes termos, procurei alinhar um horário de estudo claro e fazível, deixando espaço para o descanso. Depois do trabalho e do estudo, dedico-me a fazer tarefas que estão relacionadas com outros campos, activismo, projectos externos, etc… Não é demais dizer que para mim é importante ter um horário fixo, um rotina que se mantém, pois é-me mais fácil controlar as minhas actividades. Não posso deixar de esquecer de referir as minhas listas de tarefas no bloco de papel, aos quais vou marcando vistos e isso provoca uma sensação de realização.
Outras coisas, não menos importantes, mas mais estruturais incluem-se a definição de objectivos diários e o objectivos mensais. Faço todos os meses uma retrospectiva de como foi o mês anterior, o que poderia melhorar, o que senti e, com base nisso, decidir aquilo que me comprometo para o mês seguinte.
Estas práticas são pessoais, não têm necessariamente de funcionar com todas as pessoas. Tenho aprendido e re-aprendido, vou e volto atrás. Começo um novo dia pensando em melhorar mais um pouco, mais um pouquinho. Muitas destas técnicas foram usadas aquando da minha baixa de saúde, mas que decidi aproveitar para este momento crítico em que nos encontramos. Um momento de grandes incertezas e dificuldades. Estes métodos deixam-me mais conectada com a realidade e mais capaz de colocar as coisas em perspectiva.
Nós somos sere sociais e o contacto humano é algo importante para nós em determinados momentos da nossa vida. A carência de um sistema de saúde e um rede de apoio eficaz torna estes momentos mais complexos e difíceis de gerir. Infelizmente, é uma realidade que, neste momento, chega a muitas pessoas. Felizmente eu tive espaço e oportunidade de criar estas estratégias.
Vale a pena, entender o efeito desta crise na saúde mental global. Ainda que as pessoas não sofram previamente de algum problema de saúde mental, este distanciamento criado reflecte-se na vida diária de todas as pessoas. As interações mudaram para um formato online, mas que é limitado a quem tem essa possibilidade e limitado pela linguagem que se pode usar. As pessoas sem meios de conseguir estar na Internet, na sua generalidade, acabam a sofrer um isolamento ainda maior. Têm-se feito muitas iniciativas online para atenuar os efeitos do isolamento, mas novamente, continuamos a chegar a um grupo muito restrito de pessoas.
Torna-se claro que a COVID-19 enquanto doença não escolhe pessoas, porém o alcance dos efeitos da COVID-19 não são democráticos nem igualitários. As diferenças sociais só aumentam, tornando pessoas vulneráveis e precárias ainda mais vulneráveis e precárias. O efeito da incerteza, do medo e do isolamento social têm um efeito devastador na sanidade de cada pessoa. Urge criar infraestruturas e estruturas que consigam dar resposta a todas estas pessoas que dessa ajuda necessitam. É nesta altura que, mais do que nunca, devemos dar um passo na exploração das redes comunitárias, de apoio e de afecto, capacitando-nos de modos de suster este processo que se prevê longo.
Originalmente publicado na Naughty Weekend Zine em 2020
página criada a 11 de maio de 2025