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Entender a Transfobia

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 30 de novembro de 2020 · 3 mins read
Destrói o género binário para um mundo melhor
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Quase uma semana depois do Dia da Memória Trans e do Dia Internacional para a Eliminação de todas as formas de Violência contra as Mulheres, o mundo não para e segue o seu caminho. Segue o mundo e seguem todas as pessoas. Estes foram dias simbólicos onde se pretendia sensibilizar para a violência que existe na nossa sociedade. Para a violência exercida contra mulheres e outras identidades não hegemónicas. Num mundo onde a misoginia mata, a transfobia também. Andam a par e de mão dada. Porém, a transfobia, bem como a misoginia, vão muito para além dos feminicídios e dos transfeminicídios. A violência é um acto transversal, normalizado no cerne da nossa existência desde que abrimos os olhos para o mundo, ou até antes. Para erradicar a violência é preciso reflectir sobre ela e entender como se manifesta e como actua na sociedade em que vivemos.

Nem sempre é uma tarefa fácil. Entendermo-nos como pessoas que, ainda que inconscientemente, exercem violência sobre as demais é sempre um passo de reflexão interior enorme. A transfobia é sistémica e estrutural, não nasce de uma pessoa em particular, mas sim de um conjunto de normas e mecanismos de opressão que regem as relações de poder entre identidades e géneros. Para combater a transfobia é necessário entender estes mecanismos e quais as normas pelos quais se regem, é preciso entender de uma forma radical estas relações de poder. Não chega legalizar contra a discriminação pela identidade de género, não chega aplicar sentenças a quem propaga transfobia de uma forma clara e consciente. É preciso mais, muito mais.

Infelizmente, não posso dizer que este seja um exercício simples. A transfobia está enraizada nas atitudes que temos dia após dia. A transfobia é viva porque vivemos num cis-tema. Vivemos num mundo cissexista e cisnormado. Enquanto não assumirmos que pessoas trans, não-binárias e género diverso são compulsivamente obrigadas a viver num mundo que não reconhece a sua existência, num mundo que as quer invisíveis para não criar distúrbios nas formas de poder existentes, num mundo que as quer apagar, num mundo que as quer silenciadas, num mundo onde a sua voz não tem qualquer valor ou, até num mundo em que a sua função é ser um figurino de uma realidade criada por pessoas cis, não entenderemos nada sobre transfobia.

Porém, a transfobia é mais do que invisibilidade. Transfobia é também a manutenção de hierarquias na relação entre géneros. É manter o status quo de quem tem o poder e quem não o tem ou, não o pode alcançar. Este status quo só pode ser mantido se não existirem transgressões ao sistema em que vivemos.

Transgressão é sinónimo de colocarmos em questionamento a nossa própria existência. Transgressão é sinónimo de entendermos que a nossa experiência não é única e universal. Transgressão é sinónimo de questionamento do cis-tema e de vivênciá-lo de uma forma crítica. Transgressão é sinónimo de quebrar as regras do cis-tema construído de forma frágil, mas com tanto desiquilibro de poderes.

A transgressão é sinónimo de pessoas descontentes com a sua realidade, é sinónimo de revolução. Entender a transfobia é também entender que vivemos num sistema capitalista, patriarcal, misógino, cis-hetero-mono-sexista, racista, xenofobo, capacitista, classista,… A transfobia não se descola por natureza de outras formas de opressão, pelo contrário, dá-lhes mais áreas de actuação.

Combater a transfobia é então pensar na revolução. É entender a relação entre mecanismos de poder, é reconhecê-los e compreender as nossas próprias ações. Quando usamos certas palavras, quando apagamos as suas vivências, quando não ouvimos as suas experiências. Quando as tornamos objetos de estudo para nosso próprio proveito, quando as ridicularizamos, quando achamos que devem pedir permissão para existir. Quando achamos que têm lutar para concretizar as suas necessidades, de lutar para ver os seus corpos respeitados, de lutar para ver a sua identidade reconhecida e despatologizada.

Combater a transfobia é então pensar no porquê. Combater a transfobia é então questionar o porquê. Combater a transfobia é então revolucionar o porquê.

Quando achamos que tudo isto é menor, quando achamos que tudo isto é normal e consequência natural de sermos pessoas: não sabemos o que é transfobia.

Dani

Imagem: Smash Binary Gender - Transguyjay

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma