E se os aviões não voassem?
E se os carros não andassem ou os barcos flutuassem?
Como seria o mundo?
Não é uma situação muito difícil de imaginar, dado que nem foi assim à tanto tempo que se inventaram os barcos, os carros ou os aviões. Todos em épocas muito diferentes e a corresponder a necessidades muito diversas. Talvez o mundo hoje fosse muito diferente, ou não. Como seria o mundo quando o Sol era a única fonte de luz que nos iluminava? Como seria o céu estrelado, das noites frias, das noites quentes? Como seriam os sons da noite? Não sei, é-me difícil recuar a um momento em que nada humano existia. Porém, consigo imaginar uma coisa, um céu sem rastos de avião, um horizonte sem casas e uma noite sem luzes apontadas para o céu.
Imaginar não é conhecer, mas apenas e só… imaginar. Porém, foi a imaginação de muitas pessoas que, para o bem ou para o mal, nos trouxe até aqui. Hoje a vida não é como era. Não é como era há um ano, dez, cem, mil ou dez mil anos. Em pouco mais cinco potências de dez, chegamos facilmente ao início daquilo que foi uma viragem histórica, o nosso aparecimento. O Universo tem bastantes mais potências de dez, o que implica muito tempo, uma escala de outra natureza. Não há aviões para o Universo, muito menos carros ou barcos. Porém, podemos imaginar… podemos imaginar uma realidade onde viajamos pelo Universo de avião, pela Via Láctea de carro e pelo Grupo Local de barco. A nossa imaginação é poderosa, muito poderosa.
Foi por gostar de imaginar, de pensar e de conectar mundos que segui Matemática Aplicada e, só depois, Astronomia e Astrofísica. A física do mundo sempre me suscitou curiosidade, mas a física daquilo que nos é inacessível ainda me provoca mais interesse. Porém, sinto que num mundo tão desigual, desproporcional, injusto e precário, o meu interesse por esta ciência se tem desvanecido. Não porque deixou de ser interessante, mas porque a minha ingenuidade para com o mundo perdeu-se e em consequência, não consigo olhar para o progresso da ciência da mesma maneira. Não que não acredite no que ciência nos tem permitido (como os aviões, os carros ou barcos), mas não consigo deixar de pensar naquilo que me é, neste momento, mais fundamental: contribuir para garantir um mundo mais equitativo, igualitário, justo e equilibrado.
Enquanto vivo num mundo que está viciado no capital, na desinformação e no pânico moral, não deixo de sentir uma certa vontade de parar de viajar pela mente e de apenas imaginar - viajar leva-me a lugares difíceis, complexos e duros. Pergunto-me muitas vezes se a minha ingenuidade em ter interesse no inalcançável não seria só uma forma de fugir de um mundo que me era muito particular, concreto, sentido e pesado. A Astronomia sempre me ajudou a colocar a realidade em perspectiva: a nossa existência versus a do Universo - incluindo a minha própria vivência - a vida versus a morte. Custa-me continuar a assistir à proliferação da desinformação, do incentivo ao ódio, da divisão para conquistar. Custa-me sentir impotência para combater tal mundo. Vou fazendo pouco, mas pouco não deixa de ser pouco. Pouco continuará a ser pouco.
O Universo segue o seu caminho, seguirá sempre o seu caminho, independentemente de tudo. Não há nada que possa dizer a uma estrela para parar de brilhar senão o seu próprio tempo de existir. Por outro lado, nós seguimos caminhos de entre encruzilhadas, podemos decidir parar, podemos decidir mudar o rumo da nossa (particular e pequena) vida neste planeta. Podemos decidir não destruir a humanidade (enquanto espécie e enquanto valor).
Neste processo de reflexão, penso muitas vezes na nossa herança histórica e coletiva. Desde que existimos, nas cinco potências de dez anos passadas… o que resta hoje do que era? Nos dias que correm, tentam, tentam a todo o custo retirar-nos dessa diversidade, dessa diferença e desse potencial. Fazem-nos esquecer da nossa memória coletiva, fazem-nos esquecer daquilo que já fomos, fazem-nos esquecer do futuro que ambicionamos. Não há sentimento que não tenha sido já sentido e simultaneamente há todos os sentimentos por sentir. Somos pó das estrelas, mas também somos pó da nossa própria vida, somos pó das nossas histórias, somos pó da nossa imaginação. Somos, apenas isso, somos, somos, somos - diferentes, diversos, potenciais em permanência.
Sim.
Com muito carinho,
Dani
Imagem: In a cosmic wonderland - European Southern Observatory
Daniela Filipe Bento
Aprender e Recusar!