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Corpos fronteiriços...

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 9 de fevereiro de 2020 · 6 mins read
Corpos fronteiriços...
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“Bom dia Dr.”
“Bom dia, então o que vem cá fazer?”

Tinha aproximadamente 28 anos. Foi a minha primeira consulta de sexologia. Sentia-me ansiosa, muito ansiosa. Durante os anos anteriores, tive diversas crises identitárias, de momento para momento, sentia que teria de mudar para me sentir bem. Durante anos e anos, experimentei, experimentei sozinha para significar o que me estava a acontecer. Quis ter a certeza do que sentia, se era transponível na minha realidade ou se era algo mais. Ao mesmo tempo, as constantes crises e oscilações entre períodos maníacos, hipomaníacos e depressivos não me deixava tirar grandes conclusões sobre os meus sentires. Tudo se misturava, as crises identitárias levavam-me a crises de saúde e vice-versa. Até aos 28 anos a instabilidade era enorme.

Limite

Nesta época o meu conhecimento sobre reafirmação de género era parco. Apenas sabia algumas coisas de uns testemunhos que li uns anos antes. Numa época em que andava a experimentar a minha expressão de género e que para alguns grupos eu já era a Daniela e outros continuava a ser o Daniel. Dava um salto de um estado para o outro com enorme facilidade, era nato em mim e via-me imensamente reconhecida neste nome… Daniela. Porém, sabia que não era só isto, era muito mais do que isto. Com isto percebi que teria de ir ao médico para conseguir um relatório para poder mudar o meu nome no cartão de identificação. Na verdade pensei que seria fácil.

Fui equipada com os meus relatórios de saúde, atestando que, apesar do meu diagnóstico de saúde mental, eu estava plena das minhas capacidades de decisão e de poder consentir com este procedimento. Passado umas semanas da primeira consulta, já tinha exposto a todas as pessoas que estavam comigo o que iria acontecer. Não foi de todo difícil para mim, já grande parte destas pessoas sabia, faltava “oficializar” a mudança. Oficializar aqui significa literalmente depender de uma entidade para confirmar quem eu era. O Estado ainda não me reconhecia, mas pelo menos ser acompanhada dava-me permissão. Claro, eu não acreditava nisto. Acreditava que a única pessoa que poderia decidir sobre mim era eu mesma e que a minha identidade não era fonte de avaliação. Porém, era o sistema a empurrar-me contra a parede.

A minha passagem pela sexologia foi bastante complicada, manter a minha integridade pessoal era mais importante do que cumprir os passos que o médico achava que eu tinha de tomar. Expressava-me como queria, saias ou maquilhagem, ou não… barba ou não. Resultado: o meu processo foi-se protelando, não cabia na caixinha exigida pelo médico. Não, de todo. Acredito, também, que haveria certa desconfiança por eu ter Bipolaridade, quem diria que eu podia estar a ter uma crise maníaca…uma crise então que me duraria vários anos consecutivos, permanente, mas ao mesmo tempo mantendo-me altamente funcional em todos os outros campos.

Foi rápido até assumir-me também enquanto pessoa não binária, agénero: demirapariga. A ruptura entre mim e o sistema médico, o sistema social e o próprio Estado foi intenso. Nenhum destes três últimos teria o direito de ditar quem eu era. Muito menos limitar as minhas acções. As rupturas são visíveis nas mais comuns tarefas do dia a dia. A falta de resposta, a descriminação, a desinformação, o estigma.

É aqui, nesta época, quando me valido a mim mesma que entendo o quanto tenho vivido na fronteira. Na fronteira identitária, na fronteira da corporalidade. Naquele momento, o meu corpo já não era o expectável, já não era o normativo. Eu era uma rapariga, num corpo que é lido masculino. O sistema não tem respostas para isto… a sociedade também não. A minha identidade e o meu corpo passam a estar na margem. Numa margem de uma incoerência que a sociedade teima em fazer crer, descredibilizando a minha existência. Sabia que a partir daquele momento tudo tinha mudado. De um modo discriminatório, entrei na terra de ninguém.

Dois anos mais tarde começo processo hormonal, tinha abandonado as consultas na psiquiatria (sexologia), estavam-me a destruir toda a minha integridade enquanto pessoa. Já era bem acompanhada por outra pessoa, por isso, foi uma decisão sensata. Não acredito em autoridades, acredito em pessoas que nos ajudam a conhecermo-nos melhor e isto é tudo o que não se fazia naquelas consultas.

Do ponto de vista da minha identidade de género e identidade corporal, sei quem sou e o que quero. É natural que com a compressão de mim mesma o ser e o querer também se alterem, também evoluam com esse caminho. No entanto, esta plataforma opressiva sistémica e estrutural só te permite dois caminhos: ou és um homem, ou és uma mulher. Se és homem tens ter uma corporalidade como todos os homens cis, se és mulher tens de ter uma corporalidade como todas as mulheres cis. É a genitália que vai dizer quem tu és. Esta estrutura de controlo não me permite desconstruir a noção de identidade e corporalidade, não me permite ser livre e decidir o que sinto ser melhor para mim em cada momento. Senti, a cada consulta que ia, pressão para aceitar todas as cirurgias, só assim o meu caminho estava definido.

No entanto, para a sociedade que faz parte deste sistema de controlo, que perpetua a sua violência, que mascara o ódio atrás da desinformação e da ignorância. Eu nunca estarei em lado nenhum, serei sempre um corpo fronteiriço em terra de ninguém. Demiti-me do corpo que me foi assignado, passei a decidir sobre o que quero fazer com ele. Ainda que faça uma reafirmação sexual, para a sociedade, o meu corpo continua a não fazer parte de lado algum, porque não sou verdadeira, sou uma construção artificial de uma pessoa. Se não a faça, reafirmo-me num corpo não expectável, num corpo indeciso, numa falta de coerência. Sou uma fronteira, mas não estou presente de um lado, porque me demiti, nem do outro porque é impossível.

Porém, a minha demissão do corpo normativo, expectável, controlado, tornou-me intrinsecamente mais rica no meu sentir. As minhas emoções e sensações são muito diferentes do que eram. Ao mesmo tempo amar também se tornou um acto de revolução. Ser amada também. Amar e ser amada passa pela compreensão de um corpo na fronteira, no seu crescimento, na sua mudança, na sua construção, na sua autonomia e autodeterminação. Amar e ser amada passa por revolucionar as expectativas que se produzem sobre uma identidade e sobre um corpo. Amar e ser amada passa por entender que a mudança ou não, serão parte do processo.

É com um sorriso que, hoje, olho para a minha auto descoberta e me orgulho do que conquistei
É com um sorriso que, hoje, amo e permito-me ser amada por quem sou e por aquilo que sou, sem constrangimentos
É com um sorriso que, hoje, sinto-me apta a quebrar barreiras, a quebrar muros impossíveis de transpor.
É com um sorriso que, hoje, sou.

Dani

Imagem: Borders - ~Essence of a Dream~

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma