
Escrevo este artigo consciente dos meus privilégios como ser uma pessoa euro-branca, classe média, residente no meu país de origem (sendo Portugal um dos países responsáveis pelos processos coloniais). E consciente das dinâmicas de poder que se podem criar. Uma consciência que procura, através de elementos críticos, principalmente através de escutas e leituras de pessoas com outros recortes de opressão, como o racismo, a xenofobia, o capacitismo, entre outros. E assim repensar o meu lugar e sobretudo, o meu lugar de fala. Por outro lado, sendo mulher, trans e não-binária afirmo as minhas identidades como potencial político para a mudança social. Assim nasce este texto sobre uma visão, e não a visão, sobre cis-colonialidade.
Uma das heranças do colonialismo, do genocídio de povos e extermínio de culturas resultou no processo de homogeneização do sistema sexo-género. Podemos dizer, desta forma, que a cis-colonialidade é um sistema resultante do regime colonial e da destruição da cultura dos povos colonizados. A cis-colonialidade vive intrinsecamente numa organização cis-hetero-mono euro-branco centrada e o seu produto promove a exclusão e apagamento das diversidades e dissidências identitárias.
Com identidades dissidentes queremos dizer todas as identidades que não são experimentadas dentro da cis-hetero-mono normatividade. Sejam as vivências de pessoas trans, travestis e pessoas não binárias, sejam as vivências da sexualidade não hetero centrada. Um sistema sexo-género que é construído num modelo ocidental, euro-centrado, nas origens do patriarcado e do capitalismo. É nesta raízes que se determina quem deve e quem não deve existir. Quais são os corpos válidos e quais os corpos não válidos. Quais as identidades no centro e quais as da margem. É também nestas origens que todo um sistema de opressão evolui com base em pressupostos errónidos, seja pelo cissexismo, a transfobia, a transmisoginia, entre outros…
Sabemos que o advento da ciência e da classificação dos corpos e identidades através de mecanismos de género já intrinsecamente mesclado com o tecido social (enviesando as perguntas e as respostas), promoveu a eliminação das não-normatividades. Corroborando a ideia histórica de que as dissidências são anormalidades. A ciência não é infalível e os seus métodos são promovidos por pessoas, sobretudo, por homens euro-brancos cis-hetero. E é com este viés que é feita a leitura dos corpos e das vivências. É neste sentido que é necessária a diversidade dentro do própria ciência e procurar quebrar a homogeneização das experiências humanas.
Este mecanismo científico de decidir sobre a experiência humana, trouxe uma contínua mudança cultural com efeitos nefastos para com qualquer existência não-normativa. As dissidências passaram a ser o objecto de estudo, o objecto em análise, o objecto livre de emoções ou racionalidade. A sua voz foi substituída pela voz da ciência e de todas as tecnologias de género que mantêm o controlo da população. É certo que mais do que não existir, as vivências trans, travestis, não-binárias são apagadas. A opressão sobre estes corpos debilita a sua vivência e promove a cis-homogeneização. É neste sentido que a cisgeneridade é tida como o padrão, o normal e/ou o socialmente aceite. Ao nomear estas vivências como cis, homens-cis, mulheres-cis, em oposição a termos como mulher biológica, mulher de verdade, homem que nasce homem estamos a reposicionar estas vivências numa estrutura hierárquica de dominação de parte da cisgeneridade para com outras identidades não-cis. É com este propósito que nomear cis-sexismo também coloca a cisgeneridade no centro da opressão.
Ter um perspectiva de-colonial sobre as identidades de género é entender que a cisgeneridade atua no discurso pré-discursivo em que os corpos automaticamente nomeiam o seu género, a assunção da binariedade, apagando todas as outras existências e vivências fora deste modelo e que o género actua como algo permanente ao longo da vida de uma pessoa.
Nomear a cisgeneridade é também apontar para um sistema socio-económico-político que actua sobre quem é válido para a sociedade e quem não o é. A aculturação da diversidade espelha a mensagem de como pessoas não cisgéneras devem actuar no mundo, promovendo muitas vezes o recurso a mecanismos de mudança e de assimilação daquilo que é a vivência cisgénera. Estes mecanismos de mudança passam e/ou podem passar por processos de feminilização, masculinização, entre outros, para procurar adequar o seu corpo ao ideal padrão normativo. Padrão esse que é transmitido através de todas mensagens sociais e culturais que se recebem ao longo da sua vida.
Entender a cisgeneridade como sistema socio-económico-político é, também, perceber que não só as mensagens sociais conduzem a um estado de invisibilidade, como também a cisgeneridade proclama definir quem pertence a uma identidade dissidente ou não.
As pessoas de género dissidente crescem nas amarras da cisgeneridade e como tal, crescem com a ideia de que as suas emoções e sentires são errados. Estas identidades são pro-activamente patologizadas, seja pela sociedade em geral e, muitas vezes, por quem as rodeia, seja a medicina ou a família, as quais muitas vezes estas pessoas dependem para ter uma vida mais segura. A patologização acontece a vários níveis, seja no reconhecimento da sua identidade e/ou nas mudanças e tratamentos que querem fazer. Não é dada a liberdade de se ser, de se entender com uma experiência tão válida quanto as outras.
A inferiorizarão das pessoas trans, através da transfobia, evidência uma opressão sistémica, estrutural e institucional. Muitas vezes, a forma patológica associada às identidades trans oculta, transversalmente, quem cria/perpetua a transfobia. A exotização dos corpos trans, permitiu durante anos apagar a voz destas vivências, substituídas pelas vozes de vivências terceiras.
É, com base em todas as evidências anteriores, que é importante pensar na cisgeneridade como crítica de colonial. São estas vivências, trans, travestis, não-binárias e os seus activismos que devem ser reconhecidos, seja historicamente, seja na contemporaneidade. Activismos que viabilizam a diversidade através da sua resistência e luta. É através do processo de-colonial que se entende numa sociedade dominada pela cisgeneridade onde esta existe e quais os seus limites. É por isso, um processo interseccional que, se reduzido à academia e a alguns grupos feministas, é uma simplificação das vivências e das experiências de pessoas trans e outras dissidências. É por isso necessário entender as vivências trans (também nos seus silêncios) como estando na história e num contexto cultural.
Ante o genocídio, extermínio e marginalização das identidades não cis, é necessário re-escrever a história, criticar e legitimar estas vidas. Pessoas de género diverso foram e serão sempre uma brecha num sistema colonial, cis-binário, euro-branco e como tal, as suas subjectividades são de uma importância enorme para entender as dificuldades associadas à própria agência política e à dificuldade em encontrar referentes que suportem estas vidas.
Pensar na cisgeneridade de uma perspectiva de-colonial é entender que os saberes são múltiplos e diversos. As experiências que atravessam pessoas de género dissidente culminam na própria crítica cissexista, cisnormativa e ciscolonialista.
Neste sentido, a importância de criar pontes entre pessoas trans, não-binárias e de género diverso (e de outros movimentos feministas) de contextos diferentes, de processo políticos diferenciados de modo a que se possa construir uma crítica e uma sororidade e solidariedade interseccional para uma transformação social efectiva em prol da diversidade humana.
Originalmente publicado na TransZine - Sete Outeiros em 2022
página criada a 11 de maio de 2025