As vozes que Trans-formam

Daniela Filipe Bento

Começo este texto refletindo e questionando o meu percurso, a minha vivência, a minha experiência e principalmente o meu lugar nesta sociedade. Nos dias que aproximam o 8 de março, o Dia das Mulheres (um nome que continua a excluir a agência política de pessoas de género diverso), há uma parte de mim que colapsa na incerteza e outra que se expande na vontade de gritar. Existia e continua a existir, de forma permanente, um debate sobre a existência de pessoas trans, não-binárias e de género diverso. Questionando também a sua posição e participação no feminismo.

Será que este debate irá perdurar? Pergunto-me.

Até quando se irá negar a existência de determinadas pessoas em prol de um debate académico, teórico e pouco conectado com a sua experiência vivida? Até quando se irá “abrir” um debate sobre a inclusão de pessoas trans, negando-lhes a participação nos mais variados espaços, invisibilizando as suas vozes. É aqui que parte de mim colapsa.

A construção de espaços inclusivos não passa por chamar as vozes de pessoas trans de uma forma instrumental em benefício próprio. A construção destes espaços passa pela sua reformulação estutural, indagar no privilégio cis e entender a sua posição de poder em relação a pessoas de género diverso. O patriarcado não é um modelo construido para afectar apenas e só mulheres cis, mas também todas as outras dissidências que desafiam este modelo masculino, branco, capaz, burguês, cis, hetero, mono centrado. O capitalismo, o colonialismo, o racismo, a xenofobia, o capacitismo, a misoginia, o classismo, o academicismo, o urbano-centrismo, a gordofobia, a interfobia, o cis-hetero-mono-sexismo são apenas algumas das dimensões múltiplas da discriminação sofrida na nossa sociedade. Relações de poder que se desenvolvem em atravessamentos na experiência de cada pessoa. Por isso, a luta por uma sociedade solidária, inclusiva e igualitária, passa por uma visão interseccional profunda destas mesmas relações. Em consequência, criar um espaço inclusivo é colocar-nos em posições de questionamento, de dificuldade e, muitas vezes, de dor: entender-nos no lugar de quem, de alguma forma, também exerce poder sobre alguém. ~ As vozes dissidentes da sociedade são muitas e diversas, porém, são apagadas e escrutinadas dando lugar a debates e pressupostos que, muitas vezes, nada estão conectados com a vivência real das pessoas. É aqui que se expande a minha vontade de gritar.

Escutar-nos não é incluir-nos num debate para justificar a nossa existência, escutar-nos não é deixar-nos publicar nos demais meios de comunicação. Escutar estas tantas vozes é deixar que as experiências tomem lugar nos espaços. Escutar estas tantas vozes é deixar que as vivências sejam um motor de questionamento das estruturas sociais que nos oprimem. Não afirmo que não deva haver debate sobre determinadas questões e dúvidas, porém, antes de avançarmos para esse debate crítico é necessário abraçar a experiência e a vivência. O debate é importante, mas o seu objecto central não deve ser o que somos e porque somos, mas sim o que representamos nos atravessamentos que vivemos. A contribuição de todas estas vozes dissidentes é rica, mas é demasiado rica para se perder em julgamentos falaciosos.

Somos responsáveis pela mudança, porém a mudança não passa apenas por nós. Passa por uma luta una, cheia de complexidades e contrariedades, mas uma luta inclusiva e verdadeiramente equitativa. E aí… todas as pessoas são responsáveis.

Tenho esperança que um dia, não haja a necessidade de escrever que não quero escrever, que não quero justificar a minha pertença, que não quero ser mais objeto de estudo. Tenho esperança que um dia, a minha voz não seja apenas um instrumento, mas que seja de facto parte. Tenho esperança que um dia, possa deixar de gritar e ter incertezas… possa finalmente respirar. E vivenciar por fim… um feminismo mais inclusivo.

Originalmente publicado na Zine UMAR - Coimbra em 2021

página criada a 11 de maio de 2025