geral, trans,

Aprender e Recusar!

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 28 de setembro de 2025 · 7 mins read
Bandeira Anarco Queer
Partilha

Sentada num autocarro penso como quero começar este texto e até mesmo como continuá-lo. E pergunto-me se sei também como continuar. Hoje passei o dia no Porto, estive no Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. Há pouco mais de duas semanas estive em Hamburgo na sexta conferência da EPATH (European Professional Association for Trans Health). Foram dois momentos importantes que marcaram o meu regresso às aprendizagens após um mês parada depois de uma cirurgia. Estes encontros, apesar de positivos, deixam-me sempre com uma sensação agridoce difícil de explicar. Não porque não seja importante o que aprendo, as conexões que faço e com quem estou, mas sobretudo porque sinto uma colisão muito grande com o mundo quando chego a casa.

Nestes eventos fala-se de liberdade, fala-se de ser e existir, fala-se de medos, dúvidas e incertezas. Fala-se de dificuldades, de lutas e partilhas, fala-se de conhecimento e sobretudo, fala-se de pessoas e das suas individualidades, das suas necessidades e dos seus sonhos. Sobretudo, dos seus sonhos. Quando saio destes lugares, há sempre uma espécie de ressaca emocional, preciso estar sozinha, preciso absorver tudo o que aprendi e tudo o que vivencio desde o meu lugar. Desde o meu lugar pequeno, desde a minha própria realidade, das minhas dificuldades e também, dos meus sonhos. Falar de realidades dissidentes toca-me, toca-me porque faço parte delas e estou com elas. A minha vida, nos últimos anos, tem-se guiado por isso. Felizmente ou infelizmente, é um percurso em que me coloquei e em que me colocaram.

O autocarro vai cheio, ouço música, mas ouve-se as pessoas à minha volta… está escuro e por isso é difícil perceber quem é quem. Porém, somos plenas desconhecidas, somos distantes, tão distantes como as cadeiras que nos separam, mas também como o mundo que nos separa. Talvez eu não saiba se estas pessoas estiveram no mesmo encontro que eu hoje, se não. Também não sei que outras interseccionalidades vivenciam, apenas sei-me colocar a mim, neste banco de autocarro, com um ecrã à frente em que escrevo… um escrita sem pararem e sem distar do meu momento de reflexão interna.

Vi durante o dia (e dos dias passados), pessoas que vivem a sua vida a existir e a resistir. Abordar temas da sexualidade é um exercício difícil, sempre foi, numa cultura com tanto viés como a nossa. Estamos em 2025 e sinto que é hoje mais difícil do que há dois ou três anos. Em parte, sabemos o porquê. O discurso de ódio é uma realidade concreta do nosso dia a dia, é uma realidade concreta do meu dia a dia. Já participei em muitas conferências onde falei, onde expus, onde contrapus. Já participei em muitos momentos de debate, de troca e sobretudo, também, de violência. Porquê? Porque não é o mesmo estar num debate a defender a minha própria existência do que estar num debate onde a vida que defendemos e/ou questionamos, não é a nossa. Infelizmente este é o lugar da maioria das pessoas LGBTI+fóbicas - falam de um lugar externo a si e à sua vivência. Gostaria, muitas vezes, de que as coisas fossem diferentes, de por vezes não me sentir alvo.

Mas sinto, às vezes sinto.
Mas sinto e muitas vezes sinto.

Não consigo ficar indiferente às notícias e aos comentários que se fazem. Não consigo estar nesse não lugar. Não desejo esse não lugar, e não o desejo a ninguém. O lugar da indiferença e da falta de humanidade para com a outra pessoa. O ataque cerrado que se tem feito a pessoas trans tem-me afetado, principalmente quando falamos, especificamente, em pessoas trans femininas. Não posso dizer que às vezes não tenho medo. Pois eu sou e não quero parecer que não sou. E por isso compreendo quando outras pessoas também se sentem afetadas de acordo com as suas realidades e os seus lugares de fala. O mundo é interseccional e não somos um ser isolado do mundo, somos muitas coisas, muitas representações de diversas realidades. Compreender isto parece fundamentalmente simples, mas, infelizmente, temos o resultado à vista.

Aqui há uns dias, estava a ver alguns vídeos de conversas onde participei, têm sido várias ao longo dos anos. Mas infelizmente evito sempre de as ver e/ou ouvir e/ou ler. É rara a vez, sendo material que fica público, que não tenho uma parede de ódio destilado e refinado. É duro. Diriam-me “não ligues, mas não é fácil. Isto causa efeitos nefastos na nossa saúde mental e na nossa percepção do mundo. Obriga-me a estar na defensiva a maioria do tempo, sem pausa, sem descanso, sem piedade. Mas a verdade é que me recuso a voltar para o armário, me recuso a estar nesse lugar, mas talvez porque até hoje tenha conseguido - se calhar num futuro próximo ou longínquo não sei.

Porém, apesar do discurso de ódio que vejo por aí destilado na maioria dos artigos sobre temáticas LGBTI+, estes momentos dão-me esperança num mundo melhor, saber que há mais pessoas a lutar nesta guerra contra a desinformação e contra o ódio. saber que há mais pessoas atentas a este fato, atentas a esta manipulação dos media. Já lá vai o tempo em que achava que era só ignorância, hoje, com alguma clareza acho que há imensas pessoas que se recusam a aprender e que continuam a proliferar discurso de ódio sem saberem sequer do que estão a falar.

Com o advento das redes sociais, toda a gente tem opinião sobre tudo, toda a gente é perita sobre tudo. Mesmo que isso vá contra efetivamente quem é especialista na área ou contra as pessoas que têm voz própria no assunto. É assim que a desinformação cresce, cresce e cresce. Seria muito ingénua se acreditasse que tudo isto é fruto de ignorância. Sim, há pessoas que não entendem, nem nunca vão entender por mais que expliquemos…. não porque não sejam capazes, mas porque efetivamente não querem e preferem viver no seu mundo de abalroamento de outras pessoas.

Digo isto com alguma dificuldade, pois sempre quis acreditar nas pessoas. Porém acreditar tem limites, limites que ainda que extensos, acabam. Não percebo como os canais de comunicação não atuam contra este atentado aos direitos humanos… se calhar até percebo, click bait, manter as audiências, ser destrutivo e controlado por uma camada política anti direitos humanos é verdadeiramente a razão. Por isso, só me resta afirmar com toda a certeza que me sinto optimista, mas o mundo precisa de uma revolução, precisamos ir para a rua, precisamos continuar a ocupar espaços que nos foram sempre negados.

Deixo um abraço a todas as pessoas que se vêem a braços com discursos de ódio, para todas as vítimas de violência simbólica e física, para todas as pessoas que continuam a lutar, ainda assim por um mundo melhor e mais justo. Um abraço também para as nossas pessoas aliadas que acima de tudo também estão ao nosso lado e que também querem um mundo mais justo e que querem estar do lado dos direitos humanos. Por outro lado, um sentimento de pena por todas aquelas pessoas que destilam ódio, por todas aquelas que enchem as caixas de comentários com violência e desinformação, por todas aquelas que não tem a menor intenção de entender ou ter um discurso sincero e receptivo. Por todas aquelas que acham que nós estamos a causar o declínio de sociedade, por todas aquelas e mais algumas que me nomearam numa lista de terroristas e que procuram perturbar a vida de outras pessoas. Pena por saber que estas pessoas não conseguem ir mais longe do que isto, nem vão conseguir. pena porque o mundo evolui e há pessoas que evoluem com ele, há outras que ficam para trás….

Um sincero agradecimento a todas aquelas pessoas que fazem o mundo andar para a frente, que procuram um diálogo construtivo. Por todas aquelas que se mostram no aqui e agora, num discurso de inclusão e honestidade. para todas essas pessoas, o meu profundo respeito. São essas as pessoas que quero manter na minha vida, apenas e só.

Porque o discurso de ódio, a desinformação e as políticas e retóricas anti direitos humanos não podem continuar a ocupar o espaço mediático, temos de nos juntar e procurar soluções comuns, procurar comunidade e retornar a coletividade.

Com muito amor,
Dani

Imagem: Bandeira Anarco Queer

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma