Era 5 de Agosto. Eram 6h30 da manhã. Dormi pouco e pouco dormi. Não estava ansiosa, muito pelo contrário… calma, decidida, feliz. Sorria para mim, sorria sem medo e sem receio. Olhava-me e gostava um pouco mais de mim, estava a oferecer-me uma das melhores prendas de aniversário que poderia dar a mim mesma nos últimos 10 anos. Foram 10 anos, 10 anos a lutar por este momento… foi preciso desistir e procurar outras soluções. Foi preciso abandonar o Sistema Nacional de Saúde (SNS) e procurar uma solução para mim: apenas por mim. Eram 7h30 da manhã, estava no hospital. Tudo se passou devagar, mas simultaneamente muito rápido. Talvez, talvez o sorriso que transmitia não me permitia sentir o tempo da mesma forma. Mas assim foi.
Fez no dia 22 de Julho, 10 anos que recebi o relatório médico que me permitia aceder à lei de identidade de género que existia na altura (de 2011), foi também nesse momento que tive o primeiro relatório para poder iniciar hormonoterapia de reposição. Durante anos fui assistindo a mudanças no meu corpo das quais me faziam sentir mais identificada comigo, uma sensação de ir ficando mais sintónica com o meu corpo e aos poucos ir reconstruindo a minha realidade e a minha vida em cima destas novas mudanças. Reconhecer-me em quem eu sou, mudou completamente a minha vida e principalmente o rumo que ela estava a tomar. Olhos de alegria, sorrisos de presença e uma maior estabilidade emocional - foram elementos chave no meu processo. Ia-me encontrando e esse era um processo bonito, bastante bonito de sentir e de internamente assistir.
Mais tarde, após alguns anos de reposição hormonal, quis avançar para aquilo que já desejava há muitos anos: fazer um ajuste suplementar aos efeitos da hormonização no meu corpo. Era algo que sonhava desde criança, que sempre desejei e que com as alterações corporais devido às hormonas acentuou-se a confirmação de que queria fazer cirurgicamente um ajuste ao meu peito, materializando um sonho de décadas de uma vida.
No dia 16 de setembro 2020 vou a uma consulta no Hospital de Coimbra, na Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual (URGUS) (à altura, a unidade de referência no SNS para cirurgias a pessoas trans), mas acabei a sair de lá bastante desiludida, frustrada e triste… foi como nasceu este texto “Quando a estranheza de impede de ser Monstra”. Durante o ano seguinte fiz queixa, voltei à mesma consulta para ter o mesmo resultado - um mau trato da parte da URGUS que me deixou bastante desapontada. Sigo as consultas de endocrinologia no Hospital Santa Maria (HSM), em Lisboa, e tento aceder uma mamoplastia de aumento noutro hospital do SNS, mas durante anos foi-me barrado esse acesso, com múltiplos argumentos: desde a não necessidade, a eficácia das hormonas, os custos e até mesmo por injustiça com pessoas cis. Falou-se de tudo, menos no essencial.
Desde essa altura, apesar das minhas tentativas falhadas no HSM, continuei a exercer pressão, enquanto simultaneamente fazia todo um outro conjunto de trabalhos, dada a chegada da lei que assegurava a autodeterminação, em 2018. Coloquei-me em segundo plano, e investi tudo o que podia em luta política e social. Depois de vários anos, já com 38, era raro o ano que não tinha quedas abruptas de desconexão e desinvestimento no meu corpo… não me sentia na totalidade bem com ele… nunca o detestei ou odiei, mas sentia precisar de alguns ajustes. Não era como me via e sentia. Foi já com quase 39 anos que acabei a desistir do SNS e a procurar uma solução no privado. Contra todos os meus princípios e valores políticos de quem defende um SNS para todas as pessoas, foi no privado que consegui ver uma solução para conseguir esta desejada estabilidade que não tinha. Infelizmente foi assim, felizmente encontrei pessoas que me acompanharam de uma forma muito positiva e cuidada.
Eram aproximadamente 9h e estava a entrar para o bloco, calma e tranquila. Bastante calma e tranquila. Repito: tudo foi lento, mas bastante rápido em simultâneo. Num momento estava a vestir a roupinha do hospital, como noutro já estava na maca para me ligarem todos os instrumentos e, logo noutro momento na sala de operações com uma série de pessoas a falar comigo, a falar entre si e a acabar de ligar o que faltava. Nunca tinha sido submetida a uma cirurgia, nunca soube o que era uma anestesia, mas não esqueço, a última frase que ouvi foi “vou-te dar uma dose de caipirinha e ficas bem mais relaxada” em 2 minutos adormeci, sem sonhos e só acordei já às 11h30 no recobro de uma cirurgia que correu bem. Estava tão feliz que nem dei pelas dores, por mim já saía dali a andar para todo o lado, mas não podia. Ainda fui para o quarto e lá fiquei umas horas até ter alta. Terça ao fim da tarde já estava em casa, cerca de 10 horas depois de ter chegado ao hospital.
Estes dias têm sido calmos e tranquilos, a fazer a recuperação em casa, deixando-me descansar, dado que não posso fazer muitos esforços. Ainda tenho inchaços e ainda tenho algumas restrições de movimentos, mas no geral, penso que estou a recuperar bem. Bastante bem até, mas eu conheço-me e começo logo a querer fazer imensa coisa sem dar tempo de sarar bem o meu corpo, mas não poderá ser assim desta vez, tenho de deixar o meu corpo repousar, descansar e preparar-se para os próximos meses. Vai demorar um pouco até tudo ir ao sítio, mas faz parte.
Estou feliz e sorridente. Acho que isso foi muito evidente nestas últimas semanas. Repito: tudo foi rápido, mas tudo demorou uma eternidade. Foram 10 anos de luta para chegar aqui. A um lugar onde consigo me projetar no futuro, onde consigo me imaginar e sonhar. Porém, vou continuar a lutar, a fazer incidência política… aceder a uma cirurgia que nos trás tanto valor na nossa vida não pode ser restrito a quem pode pagar, não é justo, não é humano. Sempre acreditei num SNS que existisse para todas as pessoas e será para isso que continuarei a lutar, que continuarei a estar presente. Pois quero acreditar que estas mudanças estruturais vão ser possíveis, tão possíveis quanto são necessárias.
Porque o direito e acesso ao corpo é um um princípio fundamental,
Porque a autodeterminação é um direito essencial,
Porque existir é basilar na nossa vida.
Dani
Imagem: Daniela Bento - Pulseira de Ambulatório